domingo, 20 de abril de 2014

Máquina mortífera

         Acidentes de trânsito que ceifam milhares de vidas são comumente tratados como fatalidade. Temos um conceito do acidente (a própria terminologia já indica) ora como obra do acaso, ora como imprudência dos condutores (o que sugere um contrassenso). Baseados nisso, optamos por abandonar a compreensão de suas condições geradoras. Deixamos de considerar suas causas mais profundas, tais como os modos de convivência nas vias públicas, a gestão do trânsito, as condições de segurança dos veículos, a manutenção das estradas, a própria educação do condutor, os mecanismos de fiscalização, o socorro, as condições de atendimento médico-hospitalar etc.
Ainda que o acidente comporte a dimensão da imprevisibilidade, não se pode descartar a trama da qual ele resulta, urdida por diversos fatores.  Basta olharmos para a nítida correspondência entre a elevada e constante incidência de acidentes de trânsito em determinadas cidades e seus fatores causais. Perguntamos: um menor inabilitado, embriagado, que pilota uma moto em alta velocidade, sem capacete, numa via sem sinalização, movimentada e esburacada, numa cidade em que as instituições não gerem, nem fiscalizam o trânsito, tem raríssimas ou grandes as chances de tornar-se parte das estatísticas de mortalidade? Sabemos que esta situação hipotética repete-se a olhos vistos em muitas cidades do interior do estado.
          As estatísticas do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos – CEBELA publicadas em 2013, no documento Mapa da Violência/trânsito, apontam o município maranhense de Presidente Dutra em primeiro lugar nas taxas de mortes no trânsito por 100 mil habitantes. Dentre os 1.663 municípios brasileiros com mais de 20 mil habitantes, Presidente Dutra alcançou a maior marca com taxa de 285,7 óbitos por 100 mil habitantes no ano de 2011. Se somarmos esse número ao de outro município da mesma região, Colinas com taxa de 45.7 óbitos, chegaremos ao índice alarmante de 331,4 óbitos por 100 mil habitantes, na região. Se compararmos este índice com o de mortalidade por arma de fogo em São Luís no mesmo período (que corresponde à taxa de 31,1 óbitos por 100 mil habitantes), podemos afirmar que, na região de Presidente Dutra e Colinas, o trânsito possui um índice de mortalidade 10 vezes maior que a criminalidade na capital maranhense (São Luís é considerada a 15ª cidade mais violenta do mundo). A extensão do problema torna-se ainda maior, se considerarmos que o estado como um todo triplicou o número de óbitos em acidentes de trânsito na última década.
            Quem conhece o trânsito de algumas cidades do interior maranhense percebe a completa ausência do poder público em suas funções de educação, fiscalização e gestão do trânsito. O aumento considerável do número de veículos (especialmente de motos) tem gerado uma demanda de gestão do trânsito não atendida nessas cidades. Em face do caos instalado, cabe ao indivíduo usuário a responsabilidade de um comportamento adequado. É como o diretor da escola exigir bons resultados de um aluno cujos professores tenham se omitido de ensiná-lo a ler e escrever.
Os pesquisadores do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos – CEBELA consideram que acidentes de trânsito são evitáveis, se adotadas medidas apropriadas de segurança. Em primeiro lugar, dizem eles, é preciso que o Estado brasileiro adote uma estratégia que conceba como eticamente inaceitável que alguém morra ou fique gravemente ferido no trânsito. Uma estratégia contrária àquela vigente em nosso país, que foca a culpa pelo acidente apenas nos usuários, eximindo de responsabilidade educadores, planejadores, gestores e instituições civis.

O poder público deve compartilhar as responsabilidades por esses índices pavorosos de mortalidade em nossos municípios. Visto que, a permanecer a absoluta negligência demonstrada pelas eloquentes estatísticas, corremos o risco de reduzir a máquina administrativa pública à calamitosa condição de máquina mortífera.