sábado, 31 de maio de 2014

Estatística do coice

  Vejam o burro. Que mansidão! Que filantropia! Esse puxa a carroça que nos traz a água, faz andar a nora, e muitas vezes o genro, carrega fruta, carvão e hortaliças, - puxa o bond, coisas todas úteis e necessárias. No meio de tudo isso apanha e não se volta contra quem lhe dá. Dizem que é teimoso. Pode ser; algum defeito é natural que tenha um animal de tantos e tão variados méritos. Mas ser teimoso é algum pecado mortal? Além de teimoso, escoiceia alguma vez; mas o coice, que no cavalo é perversidade, no burro é um argumento, ultima ratio.
Esse é o trecho de uma crônica de Machado de Assis, datada de 1876. Pela atualidade, bem serve de epígrafe ao presente artigo, pois alude à questão aqui abordada. Questões que giram estonteantes em torno da leitura no Brasil.
E por ainda se falar em burro, embora a motocicleta esteja a sepultar o animal, quero viva a utopia de suplantar o símbolo da ignorância por meio do livro. A 3ª edição da pesquisa Retratos da leitura no Brasil, entretanto, aponta que temos 88 milhões de leitores (pessoas que teriam lido pelo menos um livro nos três meses anteriores à pesquisa), apenas 50% da população. Como Machado, sou afeito a estatísticas, pelos mesmos argumentos com que o grande escritor defende os números: “Eles dizem as coisas pelo seu nome, às vezes um nome feio, mas não havendo outro, não o escolhem. São sinceros, francos, ingênuos”.
Assim, se considerarmos que hoje o Brasil tem plenas condições produtivas para avançar economicamente e socialmente. Que somos a 6ª economia do mundo e que vivemos sob uma constituição democrática, conquanto todos concordem que as luzes estejam apagadas na política. É fato que nossa constituição garante ao povo o poder de decidir seu destino, por mais que essa escolha possa desagradar a muitas autoridades intelectuais.
Baseados no pressuposto de que boas escolhas não devem prescindir inteiramente da razão e do conhecimento, nos perguntamos: nas próximas eleições, o eleitor (não necessariamente leitor) terá realmente conhecimento da realidade brasileira para escolher governantes, legisladores, projetos que apontem para a superação da incredulidade política e dos problemas sociais que vivenciamos?
            A essa pergunta os números responderiam ainda com candura (apenas um pouco diferente do que responderam a Machado no Império): a nação não quer ler. Embora relativamente alfabetizada (a taxa de analfabetismo caiu consideravelmente nos últimos 20 anos, para os atuais 8,7%) 50% da população não lê. Simplesmente, porque não tem interesse, 70% dos entrevistados assim responderam à pesquisa. Mesmo desconsiderando o fato de que se dizer leitor não é realmente merecer esse título, o indicador de 50% de eleitores não leitores não prenuncia mudanças políticas encorajadoras.  
Ora, abrir mão do livro representa, no mínimo, abrir mão de um método milenar, talvez o mais eficaz até agora, de conhecimento da realidade. Fica-se refém de histórias de Sherazade contadas na televisão, onde a popularidade submete a ética à retórica. Enfim, se a nação não sabe ler, não sabe ler a nação. 50% dos cidadãos “votam do mesmo modo que respiram: sem saber porque, nem o quê. Votam como vão à festa”, podemos afirmar com Machado.
 Sem a interdiscursividade própria da leitura, os discursos soam como verdades monolíticas, incontestáveis, mesmo que não passem de embustes. Sem a leitura, na verdade, sequer dá para reconhecer um plágio (muito menos para plagiar um grande autor). Mesmo a estatística, sendo informação pura e simples, em geral é lida de forma distinta de acordo com a tonalidade ou formação política do leitor. Portanto, contra a evidente autoridade dos números apontada por Machado de Assis, restaria ainda a interpretação, a leitura. Aos que desprezam a leitura, porém, resta apenas a ultima ratio, o coice.