Já é bastante conhecida a história
de que, ainda na infância, Freud passara das leituras bíblicas para as de
Shakespeare e Cervantes. Que, na adolescência, viajara insone pelo magnífico mundo
da literatura deixando em sua vasta correspondência rastros do seu estilo. Legando
assim um conjunto de textos pessoais cujo valor ultrapassa o da informação
biográfica. As marcas deixadas em suas cartas juvenis sugerem uma formação
literária precoce que prenunciam sua sagacidade futura na abordagem de questões
psicológicas. Elas nos dão a impressão de que cada virada de página desfolhava
um conjunto de questões que, numa fase ulterior, seriam as fontes incitantes de
seu espírito engenhoso.
Tão complexa e romanesca quanto a
estrutura familiar na qual Freud se constitui são as relações literalmente familiares
que estabeleceu com suas obras, autores e personagens preferidos. Por vezes, cognominando
a si próprio com nomes de personagens de romances, noutras designando suas
crias teóricas com sobrenomes da estirpe literária.
Em toda extensão de sua obra o Pai
da psicanálise dá a ver o gosto que faz em estabelecer os laços de aliança desta
sua filha dileta com a tradição literária. O complexo psicológico mais
importante, sem o qual, segundo ele próprio, a família da psicanálise estaria
dissolvida, recebe o nome de “Édipo”. Noutra cena clássica de sua vasta obra, o
personagem da mitologia grega “Narciso” inspirar-lhe-ia outro conceito fundamental,
este batizado com o epíteto de “narcisismo”.
A formação cultural de Freud tem,
portanto, na literatura um traço tão definido que, se não podemos atribuir-lhe
o papel de esteio, ou mesmo de andaime do edifício da psicanálise, também não
podemos negar que é a partir da littera,
da natureza literária de sua obra, presente em sua escritura que se desenvolvem
a forma, o estilo e, porque não dizer, a beleza e a garantia de sua teoria.
Na adolescência, em sua
correspondência escrita em castelhano, e dirigida a E. Silberstein, Freud
assina com o cognome Cipion e trata o
amigo com quem se correspondia como Berganza,
nome de dois cães personagens de um conto de Cervantes. Durante o curso de
medicina afirmava que preferia Cervantes aos livros de anatomia cerebral. Podemos supor que estaria já aí, na
preferência pela disposição à “escuta” de Cipion e pelo “desejo de falar” de
Berganza, os rudimentos de um dilema bem posterior, questão fundadora da
psicanálise: a saber, a importância conferida à palavra em detrimento do puro funcionamento
orgânico das estruturas neurais. Sem dúvida, não podemos deixar de reconhecer
no diálogo presente em El coloquio de los perros o prenúncio do que
mais tarde viria se repetir na fundação da própria psicanálise, a inauguração
de um tratamento que consiste fundamentalmente num sujeito que escuta a fala do
outro, em detrimento de uma abordagem que atribuísse aos sofrimentos subjetivos
razões puramente orgânicas.
Marialzira Perestrello fez alusão a
esta questão no livro “A Formação Cultural de Freud” citando um trecho do
diálogo entre os dois cães personagens de Cervantes que extraímos e
apresentamos abaixo:
Berganza: Desde
que tive forças para roer um osso, tive o desejo de falar, para dizer coisas
que depositava na memória e aí, antigas e muitas, ou se amorteciam ou as
esquecia. Porém agora, que tão sem pensar, me vejo enriquecido deste dom divino
da fala, penso gozá-lo e aproveitar-me dele o mais que possa, apressando-me em
dizer tudo aquilo de que me lembre, ainda que seja de um modo atropelado e
confuso.
Cipión (mais
adiante): Fala até que amanheça ou até
que nos ouçam, que eu te escutarei de muita boa vontade sem impedir-te, senão
quando ache necessário.
No atual estágio da ciência,
sobretudo em sua feição tecnocientífica
ou fáustica- para ficarmos na seara
de nossa preferência- advogar que em excertos literários estariam as fontes
primárias de algum saber de aplicação clínica, poderia ser tomado como uma
leviandade, não fosse o peso que tem o fato de os homens continuarem a recobrir
seus neurônios com símbolos das mais variadas tintas. Que tanto preenchem sua
humanidade quanto o mundo cheio de preás da cadela Baleia de Graciliano.