domingo, 3 de abril de 2016

A verdade açoitada esperneia
Uma breve análise da "operação carbono 14" revela muito do que tem de graxa, de óleo queimado no ambiente da Lava Jato. Contradições, uso de depoimentos inconsistentes, parcialidade, ilegalidades, desrespeito ao Supremo. A bela fachada de limpadora ética parece camuflar uma velha usina atômica de fatos políticos. Sempre pronta a disparar operações mísseis com objetivos políticos e midiáticos cirúrgicos, mas que afeta todo o país. Dá a sensação de estarmos num filme de suspense transfigurado aos poucos em filme de terror. Assim, municiada por essa usina de fatos manipulados, parte da imprensa apressa-se em construir narrativas que transformem ilações e suspeitas em crimes escabrosos, desde que neles estejam envolvidos determinados personagens de um certo espectro político.
Entretanto, basta uma análise detida do noticiário impresso cotejado com informações levantadas em alguns sites para que se revele a sujeira residual própria de Lava Jatos. Algumas informações pouco divulgadas sobre a operação carbono 14 podem nos ajudar:
1) A operação "carbono 14" foi deflagrada poucas horas após a decisão do STF de que o juiz Moro devesse remeter casos conexos à Lava Jato ao Supremo (instância que decide sobre desmembramento de investigações) e antes que recebesse ofício com determinação para seu cumprimento, exatamente para criar fato consumado e transferir ao STF o constrangimento de julgá-lo.
2) O depoimento de Marcos Valério, cuja proposta de delação apresentada em janeiro de 2016 por seus advogados não foi aceita por causa do descrédito de delator, agora serve como base das acusações. O depoimento é o mesmo realizado em 2012 e agora serve à Lava Jato como base jurídica na operação Carbono 14 (como confirma a manchete do G1 "Moro ressuscita depoimento de Valério na decisão da Carbono 14"). Por que só esta semana e, justamente, um dia depois das manifestações pela democracia?
3) Com base em frágeis depoimentos como esse, hoje a Folha traz uma reportagem intitulada "Operação lava jato relaciona petrolão a caso Celso Daniel" (pag. A4) em que aponta como indício de tal ligação o depoimento do Lobista Fernando Moura que "afirmou ter sido informado" que Silvio Pereira recebia um "cala-boca" da OAS e da UTC de 50 mil 'em dinheiro vivo'. A reportagem conclui: "Ele não deu detalhes da frequência nem identificou a origem da informação". Pasmem!
4) Baseados, portanto, nisso e numa conclusão, no mínimo, leviana do juiz Sérgio Moro de ser "possível" haver "alguma ligação" entre a morte de Celso Daniel e a Lava Jato (sem explicar como e por que), a Folha de SP, Estadão e Veja construíram as seguintes manchetes:
"Prisões na lava jato ligam o petrolão ao caso Celso Daniel" - Folha de SP
"Nova operação liga Lava Jato a mensalão e caso Celso Daniel - Estadão
"Um cadáver na Lava Jato" - Veja
A íntegra do despacho de Moro demonstra a leviandade da suspeita. Ele afirma: "É ainda possível que este esquema criminoso tenha alguma relação com o homicídio, em janeiro de 2002, do então prefeito de Santo André, Celso Daniel, o que é ainda mais grave. Se confirmado o depoimento de Marcos Valério [de 2012] de que os valores lhe foram destinados em extorsão(...)
5) Desde 2002, o caso polêmico de Celso Daniel foi amplamente investigado pela polícia de SP, estado governado pelo PSDB há vinte anos. Dessa forma, não se discute, simplesmente, o fato de o juiz Moro suspeitar de tudo, inclusive, da investigação da polícia de SP. Mas contesta-se ideia de que bastou entrar na Lava Jato para que a justiça prevaleça, a verdade apareça. Sem que se discuta o quanto ambas foram acoitadas para que se chegasse a esse juízo de justiçamento.Surpreende que o caso polêmico de Celso Daniel encontre novo e rápido desfecho exatamente de acordo com o imaginário antipetista construíra, tomando-se a hipótese de uma "possível ligação" como verdade revelada. Ademais, trata-se como irrelevantes as circunstâncias suspeitas em que Moro transporta o caso para o âmbito da Lava Jato e lhe dá publicidade imediata. Suspeitas tão grandes quanto os vazamentos na Veja durante a campanha presidencial de 2014, a condução coercitiva de Lula e de outros cidadãos e a divulgação ilegal dos grampos, além de outras apontadas ao longo de todo o processo. (Veja http://noticias.uol.com.br/…/documentos-indicam-grampo-ileg…)
6) Não tenho procuração para defender o Lula nem o PT. O caso é pessoal mesmo. Me diz respeito. Recuso-me a aceitar ataques tão frontais ao que nos resta de liberdade de informação e de reflexão.

terça-feira, 7 de abril de 2015

O ministro filósofo

                                                           Jarbas Couto e Lima
Professor da UFMA. Doutor em linguística pela UNICAMP.
A nomeação do professor-titular da cadeira de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo, Renato Janine Ribeiro, para Ministro da Educação repercutiu bem no meio acadêmico. Autor de livros como "A sociedade contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil" (2000, Prêmio Jabuti de 2001) e "A universidade e a vida atual - Fellini não via filmes" (2003), “O afeto autoritário” (2004), “A ética na política” (2006) e “Política para não ser idiota” (2012), este com Mário Sergio Cortella, o filósofo tomou posse como ministro no dia 06 de Abril.
Com um perfil diferente de seus quatro antecessores no ministério, Renato Janine candidatou-se apenas a um cargo eletivo, sem sucesso. À presidência da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), de cujo Conselho e Diretoria fora membro. Ocupou também cargos de fomento de pesquisa e avaliação educacional, como o Conselho Deliberativo do CNPq e a Diretoria da Capes.
Parece sensato que alguém com este perfil seja conduzido ao cargo de Ministro da Educação. Perfil que a política brasileira costuma tratar, pejorativamente, como “técnico”. Como exceção à regra de se nomearem apenas “políticos”. Regra de escolha, amiúde, partidária, como todos nós sabemos. Evidentemente, obedecendo a critérios de rateio do governo com “apoiadores” de campanha.
Curiosamente, a escolha de um perfil acadêmico para o cargo coincide com a imensa crise política por que passa o país. E com o rotundo fracasso de um político de carreira, que foi alçado ao ministério mais pela prudência política do que pela envergadura intelectual, ou pelo percurso na área.
A despeito de seu perfil “técnico”, Janine Ribeiro, um dos maiores estudiosos brasileiros de Thomas Hobbes, é uma personalidade tão antiga quanto atual na reflexão política brasileira. Recolho aqui o artigo “Corrupção em casa: os perigos do universal”, publicado em O Estado de São Paulo de 16 de fevereiro de 1990. Republicado em “A ética na política” (Lazulli Editora, 2006).
 Nesse artigo, Renato Janine comenta dois episódios de desvio de dinheiro público na gestão municipal do PT, em 1989. O pagamento por empresas públicas municipais de São Paulo de uma viagem de trabalhadores sem terra e de um curso sobre sindicalismo. Ante as conhecidas praticas do então governador Paulo Maluf (aspirante à sucessão presidencial indireta em 1984, enviara flores pagas com dinheiro público às esposas de políticos, antes de uma convenção partidária que definiria o candidato), Janine admitia duas atenuantes morais que diferenciavam o episódio no governo petista das práticas malufistas, comuns na política brasileira. A primeira atenuante, o PT tomou a iniciativa do debate interno e da punição dos envolvidos. A segunda, o dinheiro destinou-se a causas políticas e não a pessoas.
Pondera, contudo, esta segunda atenuante. Avalia como o componente mais grave: “que militantes de esquerda possam achar que, ao canalizarem a função pública (e verbas oficiais) para um uso partidário, e não para vantagens pessoais estejam acima do Estado de Direito”. Distingue uma particularidade naquele episódio petista, em relação à velha tradição brasileira da corrupção e do patrimonialismo. O problema estaria noutro lugar. Em crer que esse tipo de desvio estaria justificado pelo objetivo de defender interesses “universais”. Essa ideia teria como fundamento a concepção de que a classe operária é “o sujeito que resgatará a história de sua parcialidade”, o sujeito Universal. Assim, em nome da emancipação da classe trabalhadora, em nome do sujeito Universal, as regras da Administração pública poderiam ser relaxadas.
Com muita antecedência histórica (o artigo é de 1990) o filósofo alertava para o que se tornou recorrente hoje em dia. O aprofundamento de uma prática de ruptura da fronteira que distinguia a esquerda da mais velha tradição brasileira de corrupção e patrimonialismo. A partir daí, em nome do operariado, portador do universal, todo ato político se justificaria eticamente como estratégia.
Onde estaria o erro - ou o autoengano? Segundo Janine Ribeiro, em não se enxergar como a experiência histórica e o mundo contemporâneo tem demonstrado a falência da concepção de que o operariado traz consigo o Universal, o bem comum (crise do socialismo real, potencialização da Ideologia burguesa através da mídia, prevalência da tecnologia sobre a força de trabalho humana, etc.)
Os fatos históricos do Brasil, decorridos desde a publicação do artigo de Renato Janine, confirmam seus argumentos. Acrescentaria de minha lavra uma opinião: o fracasso da emancipação da classe trabalhadora como representação do Universal legou à esquerda uma confusa racionalidade populista. Assim, as “conquistas populares” mantiveram-se como forma de justificar toda prática política.  A ascensão do Partido dos Trabalhadores ao Governo, por efeito do desencanto neoliberal, trouxe todos os ingredientes que fazem o episódio de 1989, na prefeitura de São Paulo, parecer inocente. Um pecado menor, mas que continha em si o germe de sua posterior manifestação exuberante.  
O professor de ética e filosofia Renato Janine Ribeiro não é apenas uma escolha “técnica”, mas a possibilidade concreta se reatar os laços com o debate filosófico e ético na política. O simples fato de alguém com essa capacidade de análise política ter aceitado o cargo nos faz crer que há vida no governo Dilma.

Que o erro político de consequências éticas do Partido dos Trabalhadores, previsto pelo filósofo, não devore a possibilidade de experimentarmos os efeitos de sua filosofia e de sua ética na gestão da educação brasileira!

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

05 de Outubro

      Foi na esteira do bom augúrio de 05 de outubro que se deu, em 1143, a independência do Condado Portucalense, de cuja liberdade nasceria o reino de Portugal, nação da qual descendemos. Num outro 05 de outubro, no ano de 1897, chegou ao fim o massacre do povo de Canudos pelo exército brasileiro. 05 de outubro traz mesmo a sina de findar opressões populares e fazer renascer promessas de novos governos, mais democráticos.
Está registrado também, nos anais do Congresso Nacional, que foi no dia 05 de Outubro de 1988 a sessão solene de promulgação da atual Constituição da República Federativa do Brasil. Naquele dia, quando a cerimônia foi encerrada, concluía-se a transição de uma ditadura de mais de 24 anos e o surgimento de um novo período histórico, a partir do qual passava a vigorar a democracia que, com todas as suas imperfeições, é o regime político mais seguido no mundo todo. A partir daquele dia, então, extinguiram-se diversas arbitrariedades. Como, por exemplo, tornou-se ilegal o poder que tinha a polícia de realizar operações de busca e apreensão sem autorização judicial. Operações essas que resultaram em muitos desaparecidos e torturados e que ainda resultam numa cultura policial de brutalidades. Foram muitas as conquistas políticas e sociais alcançadas na letra da Constituição Brasileira das quais desfrutam as novas gerações, mesmo sem saber quanto custaram.
Ironicamente, naquela sessão, o presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães estava acompanhado do então presidente da República, José Sarney. Olhando as imagens daquele dia, não se pode deixar de perceber as mãos trêmulas de Sarney ao pronunciar seu juramento à nova constituição.
Passados 26 anos daquela sessão solene, o que dela ainda reverberou no último 05 de Outubro no Maranhão, porém, não foi aquela indecifrável tremedeira. Neste nosso 05 de outubro de 2014, um momento tão solene quanto a promulgação da constituição, ainda ecoam as palavras pronunciadas por Ulisses Guimarães: “no que tange à Constituição, a Nação mudou. A Constituição mudou na sua elaboração, mudou na definição dos poderes, mudou restaurando a Federação, mudou quando quer mudar o homem em cidadão, e só é cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa.”
A eleição de Flávio Dino é também um eco da Constituição de 05 de Outubro de 1988 que, em seu Artigo 14, rege que “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei”. Foi através dela, enfim, que os maranhenses escolheram dar um basta no arbítrio institucionalizado e iniciar um período democrático de ordem semelhante àquela de 1988. A eleição de Flávio Dino rompe um ciclo de autoritarismo disfarçado que já dura mais de 40 anos, retroalimentado não diretamente pela força militar, mas, sobretudo, por uma estrutura política viciada, que impunha até então, o domínio de um grupo oligárquico e sua rede de asseclas mantida com dinheiro público. Basta uma olhadela para como o palácio Roseano era ocupado e preparada sua corte, para perceber que o que se prenuncia com Flávio Dino, nesse plano, adquire ares de Outubro Vermelho.
Todavia, são constitucionais e expressam o poder do povo as mudanças que se iniciam com a eleição de Flavio Dino. Visto as vicissitudes pelas quais passou e passa o estado, representam mesmo o início de um novo regime político no estado do Maranhão. Ponha-se em prática a Constituição e faremos a passagem para a República.
Do ponto de vista dos procedimentos políticos, não se impõe que Flávio vá além de Ulisses, não o herói de Homero com seu cavalo de Tróia, mas o dos princípios constitucionais. E já terá feito muito! Flávio Dino, por si mesmo, já é a possibilidade de fazer, com lições de política, ética e justiça, com que o Maranhão torne-se um estado republicano. E que mude o homem maranhense em cidadão, lembrando a definição daquele 5 de Outubro constitucional: “só é cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa.”

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Candidato Hitchcock

Uma noite dessas, como alternativa ao horário eleitoral, assisti “O Homem Errado”, do grande diretor Alfred Hitchcock. O filme conta a história de uma injustiça causada por um equívoco, desses bastante verossímeis. Um músico dedicado e pai de família (Henry Fonda) é confundindo com um assaltante de banco, quando sua mulher (Vera Miles) precisa de 300 dólares para tratar os dentes e ele vai à agência saber quanto pode levantar de empréstimo com uma apólice de seguros. Identificado pelos funcionários, dada a semelhança física, como o assaltante que roubara o banco um ano antes, ele é indiciado e passa a sofrer toda sorte de constrangimentos. Por mais que negasse a autoria dos assaltos, todo o enredo em que se envolveu apontava para o músico como único autor desse e de outros crimes. Logo percebi que a troca do horário eleitoral pelo filme não havia sido tão vantajosa assim. Não, simplesmente, por ser do gênero policiesco, que permitiria confundi-lo facilmente com a política na atualidade. Mas, pelo tipo de confusão ética, que toma um homem honesto por um ladrão assumido. Esse tipo de confusão inevitável, por nossas limitações humanas. Ainda que, no caso de alguns políticos, ao contrário do filme, o equívoco consista em tomar-se rato por lebre. O personagem injustiçado do filme, por sua vez, parece-se mais com aqueles raros bons políticos que, no contexto atual da política, vivem a impossibilidade de sustentar cabalmente sua conduta. Não simplesmente a impossibilidade de distinguir-se, por suas virtudes, dos demais candidatos, mas a impossibilidade de defender e colocar em prática suas ideias de forma clara. Alguns assumem a impossibilidade com resignação e continuam numa luta política silenciosa, outros adotam atitude semelhante à do personagem do filme, ao defenderem-se das desconfianças e acusações da opinião pública. Com isso, deixam de propor políticas, de conduzir projetos, de assumir posições claras, para entregar-se à tarefa de livrar-se dos riscos da impopularidade. Estes bem sabem que para os eleitores da cultura midiática, assim como de resto para investigadores e juízes modernos, o princípio do livre convencimento não se sustenta apenas em provas. Ainda que candidatos tenham o direito de dar provas de sua conduta, o eleitor, em seu exame, é livre para crer ou não no que tais provas pretendem provar. O eleitor moderno não baseia sua decisão numa verdade prévia, num real dos fatos, mas naquele enredo que lhe pareça mais verossímil. Daí o sucesso dos marqueteiros... Mas, resta ainda a pergunta: que política é essa na qual candidatos sustentam ou reajustam seus ideais políticos em função das pesquisas de opinião? Que enredo se quer construir, quando se vai escrevendo ao sabor dos leitores? Que verossimilhança a política exige para se politizar? Segundo o Dicionário Aurélio, “verossímil” não é propriamente o verdadeiro, o real. “Verossímil” significa “1.Semelhante à verdade. 2. Que parece verdadeiro; provável.” No filme de Hitchcock (em muito dos seu filmes o diretor joga com a verdade e o verossímil) tudo fazia crer que o músico era mesmo o assaltante. Da mesma forma, a impressão da verdade que a ficção política consegue provocar no eleitor é algo do qual não podemos nos livrar hoje em dia. Talvez seja isso mesmo que peçamos em tempos midiáticos, uma política literatura (de folhetim), mais do que uma literatura política. Ainda que sejamos, frequentemente, convocados a absolver nossas escolhas presentes e futuras. Na política atual, como nos filmes de Hitchcock, sempre estaremos fundamentalmente equivocados. Entretanto, vale a pena o esforço intelectual para diferenciar o horário eleitoral de uma obra de ficção.

sábado, 9 de agosto de 2014

Lençóis, jazz e blues

A noite era invadida pela luz do palco e ciumentinha a lua se abrigava do brilho que refletia da praça. De longe, a sempre complacente Igreja dos Remédios lançava um olhar aturdido de mocinha espantada. Enquanto isso, o público extasiado levantava-se para aplaudir de pé, ainda sob o impacto do romance das canções, o finalzinho do show. As notas de “Georgia on my mind”, “New York, New York”, “What a wonderful world” ainda passeavam pelos ouvidos da praça do Jazz, com Maria Comunista de mãos dadas com “Patativa”. E eu me perguntava, ainda atordoado com a interpretação de “What a difference a day made”: what?, what?
Sim, um público grandioso na praça Maria Aragão completamente hipnotizado pela voz baritenor aveludada de Augusto Pellegrini. Sobrenome que bem poderia ser Sinatra, Bennet, Armstrong, não fosse perder o tempero inconfundível, simplesmente augusto, sublime. Naquele momento, acontecia o ápice de uma das mais belas apresentações musicais que a Ilha, fazendo jus ao amor do nome, já vira, ouvira e sentira. Momento único do VI Lençóis Jazz & Blues Festival (http://www.lencoisjazzeblues.com) no qual o lirismo sofisticado do jazz de fraque desfilou elegante na praça da dignidade do povo.
 O êxtase a que o público chegava era o acúmulo de overdoses estético-musicais, provocadas também pelos convidados de Augusto. Além do reconhecido talento de Fernando de Carvalho, Augusto generoso trouxe uma rosa atômica. Rosa, porque diva para ela é pouco. Camila Boueri foi explosiva, incendiária, revolucionária. Ainda estou a me perguntar se essa moça existe mesmo, ou se é um truque do Tutuca. A rosa blue fez arrepiar, deu frio na espinha, fez minha mulher chorar. Interpretações adultas, no calor azul de seu vestido brilhante. Dicção perfeita, técnicas vocais e afinação. A praça quer saber: onde ela canta? O Brasil ainda não sabe que quer ouvi-la, mas quer. Será que a moça anda se escondendo do brilho como fez a lua azul sobre a praça? Lua, cante, blues!
Depois de tudo isso, ainda tivemos o show absolutamente encantador da banda londrinense Cluster Sisters, com seu jazz de vestidinho de bolinha e trios vocais perfeitos. Um estilo relíquia rejuvenescido por girls e boys talentosíssimos e charmosos que encantou a todos. E ainda teve Bela apresentação do gaitista Jefferson Gonçalves!!! Ufa!
Imaginem o que as rosas e luas dos bastidores tiveram que trabalhar para realizar o festival. Destaque absoluto para a organização e produção profissional, generosa e sensível. A qualidade sonora e a iluminação estão no nível dos melhores festivais do gênero. Que estrutura! Que programação! Parabéns, Tutuca Viana, Renata Rodrigues, Zuilla Pereira & Cia!!! O povo da praça agradece pela beleza da noite, pelas canções, pelo espetáculo que vocês trouxeram. Vocês foram os culpados por esta insônia delirante na madrugada. O Jazz e os Blues do festival ainda não saíram dos meus lençóis.

domingo, 6 de julho de 2014

Estúpido futebol

Atribui-se ao escritor argentino Luiz Borges a seguinte afirmação: “o futebol é universal porque a estupidez humana é universal”. Não posso confirmar a veracidade, mas gostei da frase. Talvez, por isso mesmo, por comportar a estupidez humana, o futebol seja o mais inquietante e humano dos esportes. De fato, toda bola suja, pelada e descalça de campinho de quintal carrega uma teoria redondinha do universo. Para Pascal "O Universo é uma esfera infinita cujo centro está em toda parte e a circunferência em parte nenhuma.” Lendo a afirmação de Borges pelo avesso, chega-se a que a estupidez humana é universal e infinita como uma bola de futebol.
“É milenar, é milenar, a invenção do futebol” diz o samba da Beija-Flor de Nilópolis. A antiguidade da invenção talvez tenha deixado a impressão em Borges de que estupidez humana tenha nascido com o futebol. Desconfio, no entanto, que esta seja anterior ao próprio homem. Um atributo da vida, da biologia. O homem nasce mesmo é com o futebol. O futebol é apenas tão redondamente estúpido, antigo e universal quanto o homem humano de cada um de nós. “Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é o homem humano. Travessia ”(Guimarães Rosa).
Se precisássemos personalizar a estupidez do futebol, encontraríamos no árbitro a figura perfeita. Que milionário se prestaria a ser xingado por uma multidão, embaixo de sol a pino, metendo-se voluntariamente numa disputa apaixonada entre duas nações? O senhor Jonas Eriksson, árbitro sueco da partida Brasil x Camarões. A máxima nietzsheana "não existem fatos, apenas interpretações" deveria ser o lema dos árbitros, esses paradigmas da estupidez humana. Tudo pelo poder. Na trama da disputa é dos “senhores de preto” o poder supremo da interpretação, da construção da verdade. Tornamo-nos súditos no reinado do apito. Curvados perante reis de Suécia, de Espanha, ou da Cochinchina, aceitamos com resignação “erros" (interpretações) que muito nos desagradam.
Acontece que, apesar de todo poder, os árbitros continuam estupidamente humanos. Simplesmente, não enxergam direito. As câmeras veem tudo, os árbitros não. Comete-se o zotismo de compará-los. Câmeras, contudo, só servem aos críticos. É coisa para depois do espetáculo. Na boca da cena, o poder do apito continua absoluto. Alguns jogadores conhecem bem a cegueira destes senhores e dela se utilizam. No jogo contra a Colômbia o jogador colombiano fez um golpe de luta livre parecer um acidente de trabalho. Não pretendemos demonizar o jogador colombiano. Há quem diga que a entrada com o joelho na coluna vertebral de Neymar foi apenas para fazer a falta, matar a jogada. Mas é preciso saber distinguir entre estupidez e violência. Presumir um lance desse como normal é substituir a primeira pela segunda. O árbitro está ali para preservar a poesia do futebol, a integridade dos craques, com tudo o que esses seres têm de parvos.
            A violência não pode ser acolhida no futebol com cordialidade. Seria a intromissão da estupidez da vida real na estupidez do esporte. Não podemos aceitar que a violência invada sorrateira este setor sublime da cultura, suporte da estupidez humana. Se matarmos o craque (ainda que metaforicamente), choraremos como carpideiras no velório da poesia. Mais do que punir o jogador colombiano é preciso medidas para coibir esse tipo de entrada, como se fez com o carrinho por trás.
       Definitivamente, não só o time da Espanha abdicou de seu reinado na Copa. O árbitro espanhol também esqueceu as cores de sua bandeira e nelas os cartões. Uma estupidez!!!

sábado, 31 de maio de 2014

Estatística do coice

  Vejam o burro. Que mansidão! Que filantropia! Esse puxa a carroça que nos traz a água, faz andar a nora, e muitas vezes o genro, carrega fruta, carvão e hortaliças, - puxa o bond, coisas todas úteis e necessárias. No meio de tudo isso apanha e não se volta contra quem lhe dá. Dizem que é teimoso. Pode ser; algum defeito é natural que tenha um animal de tantos e tão variados méritos. Mas ser teimoso é algum pecado mortal? Além de teimoso, escoiceia alguma vez; mas o coice, que no cavalo é perversidade, no burro é um argumento, ultima ratio.
Esse é o trecho de uma crônica de Machado de Assis, datada de 1876. Pela atualidade, bem serve de epígrafe ao presente artigo, pois alude à questão aqui abordada. Questões que giram estonteantes em torno da leitura no Brasil.
E por ainda se falar em burro, embora a motocicleta esteja a sepultar o animal, quero viva a utopia de suplantar o símbolo da ignorância por meio do livro. A 3ª edição da pesquisa Retratos da leitura no Brasil, entretanto, aponta que temos 88 milhões de leitores (pessoas que teriam lido pelo menos um livro nos três meses anteriores à pesquisa), apenas 50% da população. Como Machado, sou afeito a estatísticas, pelos mesmos argumentos com que o grande escritor defende os números: “Eles dizem as coisas pelo seu nome, às vezes um nome feio, mas não havendo outro, não o escolhem. São sinceros, francos, ingênuos”.
Assim, se considerarmos que hoje o Brasil tem plenas condições produtivas para avançar economicamente e socialmente. Que somos a 6ª economia do mundo e que vivemos sob uma constituição democrática, conquanto todos concordem que as luzes estejam apagadas na política. É fato que nossa constituição garante ao povo o poder de decidir seu destino, por mais que essa escolha possa desagradar a muitas autoridades intelectuais.
Baseados no pressuposto de que boas escolhas não devem prescindir inteiramente da razão e do conhecimento, nos perguntamos: nas próximas eleições, o eleitor (não necessariamente leitor) terá realmente conhecimento da realidade brasileira para escolher governantes, legisladores, projetos que apontem para a superação da incredulidade política e dos problemas sociais que vivenciamos?
            A essa pergunta os números responderiam ainda com candura (apenas um pouco diferente do que responderam a Machado no Império): a nação não quer ler. Embora relativamente alfabetizada (a taxa de analfabetismo caiu consideravelmente nos últimos 20 anos, para os atuais 8,7%) 50% da população não lê. Simplesmente, porque não tem interesse, 70% dos entrevistados assim responderam à pesquisa. Mesmo desconsiderando o fato de que se dizer leitor não é realmente merecer esse título, o indicador de 50% de eleitores não leitores não prenuncia mudanças políticas encorajadoras.  
Ora, abrir mão do livro representa, no mínimo, abrir mão de um método milenar, talvez o mais eficaz até agora, de conhecimento da realidade. Fica-se refém de histórias de Sherazade contadas na televisão, onde a popularidade submete a ética à retórica. Enfim, se a nação não sabe ler, não sabe ler a nação. 50% dos cidadãos “votam do mesmo modo que respiram: sem saber porque, nem o quê. Votam como vão à festa”, podemos afirmar com Machado.
 Sem a interdiscursividade própria da leitura, os discursos soam como verdades monolíticas, incontestáveis, mesmo que não passem de embustes. Sem a leitura, na verdade, sequer dá para reconhecer um plágio (muito menos para plagiar um grande autor). Mesmo a estatística, sendo informação pura e simples, em geral é lida de forma distinta de acordo com a tonalidade ou formação política do leitor. Portanto, contra a evidente autoridade dos números apontada por Machado de Assis, restaria ainda a interpretação, a leitura. Aos que desprezam a leitura, porém, resta apenas a ultima ratio, o coice. 

domingo, 20 de abril de 2014

Máquina mortífera

         Acidentes de trânsito que ceifam milhares de vidas são comumente tratados como fatalidade. Temos um conceito do acidente (a própria terminologia já indica) ora como obra do acaso, ora como imprudência dos condutores (o que sugere um contrassenso). Baseados nisso, optamos por abandonar a compreensão de suas condições geradoras. Deixamos de considerar suas causas mais profundas, tais como os modos de convivência nas vias públicas, a gestão do trânsito, as condições de segurança dos veículos, a manutenção das estradas, a própria educação do condutor, os mecanismos de fiscalização, o socorro, as condições de atendimento médico-hospitalar etc.
Ainda que o acidente comporte a dimensão da imprevisibilidade, não se pode descartar a trama da qual ele resulta, urdida por diversos fatores.  Basta olharmos para a nítida correspondência entre a elevada e constante incidência de acidentes de trânsito em determinadas cidades e seus fatores causais. Perguntamos: um menor inabilitado, embriagado, que pilota uma moto em alta velocidade, sem capacete, numa via sem sinalização, movimentada e esburacada, numa cidade em que as instituições não gerem, nem fiscalizam o trânsito, tem raríssimas ou grandes as chances de tornar-se parte das estatísticas de mortalidade? Sabemos que esta situação hipotética repete-se a olhos vistos em muitas cidades do interior do estado.
          As estatísticas do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos – CEBELA publicadas em 2013, no documento Mapa da Violência/trânsito, apontam o município maranhense de Presidente Dutra em primeiro lugar nas taxas de mortes no trânsito por 100 mil habitantes. Dentre os 1.663 municípios brasileiros com mais de 20 mil habitantes, Presidente Dutra alcançou a maior marca com taxa de 285,7 óbitos por 100 mil habitantes no ano de 2011. Se somarmos esse número ao de outro município da mesma região, Colinas com taxa de 45.7 óbitos, chegaremos ao índice alarmante de 331,4 óbitos por 100 mil habitantes, na região. Se compararmos este índice com o de mortalidade por arma de fogo em São Luís no mesmo período (que corresponde à taxa de 31,1 óbitos por 100 mil habitantes), podemos afirmar que, na região de Presidente Dutra e Colinas, o trânsito possui um índice de mortalidade 10 vezes maior que a criminalidade na capital maranhense (São Luís é considerada a 15ª cidade mais violenta do mundo). A extensão do problema torna-se ainda maior, se considerarmos que o estado como um todo triplicou o número de óbitos em acidentes de trânsito na última década.
            Quem conhece o trânsito de algumas cidades do interior maranhense percebe a completa ausência do poder público em suas funções de educação, fiscalização e gestão do trânsito. O aumento considerável do número de veículos (especialmente de motos) tem gerado uma demanda de gestão do trânsito não atendida nessas cidades. Em face do caos instalado, cabe ao indivíduo usuário a responsabilidade de um comportamento adequado. É como o diretor da escola exigir bons resultados de um aluno cujos professores tenham se omitido de ensiná-lo a ler e escrever.
Os pesquisadores do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos – CEBELA consideram que acidentes de trânsito são evitáveis, se adotadas medidas apropriadas de segurança. Em primeiro lugar, dizem eles, é preciso que o Estado brasileiro adote uma estratégia que conceba como eticamente inaceitável que alguém morra ou fique gravemente ferido no trânsito. Uma estratégia contrária àquela vigente em nosso país, que foca a culpa pelo acidente apenas nos usuários, eximindo de responsabilidade educadores, planejadores, gestores e instituições civis.

O poder público deve compartilhar as responsabilidades por esses índices pavorosos de mortalidade em nossos municípios. Visto que, a permanecer a absoluta negligência demonstrada pelas eloquentes estatísticas, corremos o risco de reduzir a máquina administrativa pública à calamitosa condição de máquina mortífera.   

sábado, 29 de março de 2014

A Política Oprimida

                                                   
           Corrupção. Incompetência. Ganância pelo poder. Estes são os atributos mais comuns que os críticos apontam nos políticos. Amiúde, os mesmos predicados presentes nas críticas que costumamos ver endereçadas a nossa sociedade. Surge, então, a pergunta: tais qualidades seriam reflexos da sociedade, ou as mazelas da sociedade provêm da inépcia dos políticos? Em primeiro lugar, é preciso dizer que o julgamento popular do desempenho e comportamento de políticos, na maioria das vezes, incorre numa contradição. Em definição clássica, a Política seria a arte e a ciência de governar a sociedade; logo os culpados pelos desgovernos da sociedade, num sistema representativo, deveriam ser os políticos de um modo geral. E é isso mesmo que as pesquisas do IBOPE, realizadas depois dos protestos de 2013, mostram. Os dados da pesquisa revelam que 60% da população não têm confiança nos partidos políticos nem no Congresso Nacional e 56% não confia no Governo Federal. Enquanto isso, instituições como os bombeiros, as igrejas e as forças Armadas possuem alto índice de aprovação. Conclui-se que as instituições sociais continuam a gozar de prestígio que no Sistema Político escasseia.  
Críticas cotidianas e fáceis a políticos e a governos têm suas justificativas. Embora a corrupção endêmica e a incompetência não sejam atributos exclusivos dessa esfera da vida social. Mas para ir além da crítica fácil, é preciso filosofar um pouco e perguntar-nos de onde vem a separação atual entre a Política e os políticos. Entre governos e políticos de um lado (ou seja, a política representativa) e a própria Política (enquanto uma dimensão da vida social) de outro.
Esta separação entre Política e políticos parece explicar a eleição e o sucesso de público da própria Presidenta. Vindo dos bastidores da governança ela se elegeu e parece governar mantendo distância do Congresso e dos partidos. Ou, pelo menos, é o que tenta parecer. O agravamento das condições sociais reais (na mesma direção do crescimento econômico) talvez tenha levado a esta separação. Vejamos um exemplo simples e eloquente: São Luís levou 348 anos para atingir a marca de 150.000 habitantes; antes do aniversário de quatrocentos anos, já havia chegado a um milhão de espremidos em ruas, avenidas, shoppings, hospitais, ônibus e bairros populosos. Num intervalo de 05 décadas a população cresceu mais de seis vezes, o que demorou três séculos e meio para alcançar. Considerado o ritmo de crescimento medido pelo IBGE, a cada década emergirá um contingente populacional igual ao que habitava a cidade na década de 1960. Se tomarmos a população da década de 1960 como unidade, teremos uma São Luís a mais em cada década vindoura. Bastante proporcional ao crescimento populacional é o numero de mortes por arma de fogo. De acordo com o Mapa da Violência 2013, na última década houve um crescimento de 267,4% neste indicador de violência. A cidade torna-se assim um desafio extraordinário para qualquer governança. E a Política para que serve?
É preciso destacar que problemas complicados como esses não estão nem no discurso, nem no horizonte de partidos políticos ou das câmaras legislativas. A expectativa de “soluções” (e não do necessário debate político para alcança-las) é depositada mais na governança do que na Política, o que se torna uma flagrante contradição. Nesse contexto, resta ao cidadão apenas denunciar e/ou pedir. Assim, para a finalidade de governança as ideologias e críticas sociais mais amplas são, muitas vezes, desprezadas. Oprimida pela urgência do real da sociedade em pânico, e impotente em seus mecanismos e discursos, a Política tende a se reduzir a disputas intestinas. E a ter decretada sua própria exclusão como forma de pensar destinos sociais. O matiz de cada “grupo” (fala-se mais de grupo do que de partido) que chega ao Governo apenas muda o foco embaçado da governança. Embora a alternância entre grupos possa representar alguma diferença no “jogo político”, a forma como está sendo jogado encerra a mesma incapacidade de produzir transformações sociais, políticas, econômicas significativas. A cada vez que um “grupo” derrota o oponente, resta-lhes a missão de devorar o prato frio da vingança: a administração de sua manutenção no poder e a gestão impossível da crise social crescente.
Por outro lado, num cenário político em que a Política torna-se infértil, resta o debate sobre os atributos dos líderes. Aí o palco apresenta-se livre para heróis, vilões e tragédias. No início dos anos 90, em meio a uma crise econômica, vivemos um Brasil em que a "opinião pública" era cegamente apaixonada pelo então "caçador de marajás". Não foi preciso esperar o terceiro ato para saber no que deu. Hoje, vemos um ministro do Supremo prestando-se ao mesmo papel. E ao que tudo indica, o herói da ocasião está, mais uma vez, a um passo da vilania.
Isto nos revela que apenas uma sociedade politicamente frágil não pode prescindir de heróis. Dependente de ilusões, numa escala que pode variar de totens a celebridades, ela pode sim abrir mão das instituições, da educação e da formação espiritual (ingredientes da tão sonhada ética).
Numa sociedade assim a impossibilidade da Pólis aniquila o cidadão (termo que vem do grego Politikós); A distância do Sistema Político em relação aos cidadãos na sociedade contemporânea apresenta consequências por demais eloquentes. O cidadão perdeu a capacidade de governar os negócios públicos. A distância entre representante e representado faz da política profissão, concurso público. Não havendo possibilidade de governar, a política reduz-se ao cinismo do poder para si. E a Cidade, ideal grego, transfigura-se num cogumelo atômico; quanto mais se expande, mais expressa a potência da bomba nela encravada.


sábado, 31 de agosto de 2013

Quase Rebus

       I
Que seres de c’Alma
Sabedoria
Cerraram portas
Calando aos poucos
O dessaber do m’Eu?

       II
Que polidez
Retorceu
Um
Desfeito
Pra
Em mil eras de Silêncios
Noutra Encarnação
Milenar Sujeito?

        III
Que des-ser 
Refechado de amor
A se projetar
No anteparo olhar de amariana?
Que velho marujo desertado de amar
Regressado  
ao Mar se Adriana? 


sábado, 20 de julho de 2013

A rua é a maior (arqui)bancada do Brasil.


Os protestos que vemos estourar nas principais capitais brasileiras ainda carecem de um entendimento mais profundo. Os cronistas políticos e intelectuais que costumam comentar esses fatos se dizem “atordoados”. Nem mesmo os governos sabem qual o sentido exato das manifestações. Podemos mesmo afirmar que esse sentido exato não existe.
Pelo que vemos, a mobilização inicialmente organizada do movimento social Passe Livre, em torno de reivindicações claras sobre revogação do aumento das passagens de ônibus, se difunde por intermédio das redes sociais e alcança dimensões inesperadas. Algumas questões debatidas cotidianamente nessas redes podem nos dar uma pista sobre a rápida expansão do movimento: abaixo à corrupção na burocracia e na política (em todos os partidos), não à violência urbana, por transportes públicos de qualidade, por escolas públicas decentes, por universidades em pleno funcionamento, pelo acesso a bens culturais de qualidade, contra o consumismo e a concentração de renda, pelo respeito e melhor salário para os professores, etc. tudo isso contraposto aos bilhões de reais investidos em projetos megalomaníacos para a Copa. Estes temas dão força ao discurso em rede que move as passeatas caudatárias das insatisfações.
Embora as redes sociais sejam importantes para a motivação e organização dos protestos, resta muito a ser explicado. Há um paradoxo intrigante: há muitas razões para o movimento acontecer, ao mesmo tempo em que não há nenhuma razão objetiva que explique as dimensões por ele alcançadas. Entre os ataques com balas de borracha de policiais paulistas a manifestantes (quinta-feira, 13/06) e a ida de multidões às ruas (segunda-feira 17/06), Ferreira Gullar publicou um artigo na Folha no qual ressalta o importante papel político que um pequeno grupo teatral, o Grupo Opinião, desempenhou na liderança da Passeata dos 100 mil. Segundo ele, tudo começou contra as ações localizadas de censura às peças teatrais e desembocou num movimento amplo contra a ditadura militar. Como no movimento atual, tudo começou pequenininho e foi tomando proporções monstruosas. A diferença mais surpreendente é que naquele momento, havia uma ditadura implantada. Fica a pergunta: estariam obstruídos os canais da expressão política hoje, mesmo que formalmente abertos?
Para responder a esta pergunta, é preciso, em primeiro lugar, reconhecer que, entre as margens do vandalismo e da violência policial, há um movimento forte e legítimo de expressão política da sociedade. Marcado pelo importante papel dos estudantes como seus líderes intelectuais, fazendo ressoar a voz rouca das ruas que já faz tremer governos. Os amplos setores da classe média relativamente esclarecida, insatisfeitos com os espetaculares absurdos midiáticos cotidianos, já veem na juventude (mais uma vez) capacidade e coragem de expressar sua indignação. Mesmo que não se saiba exatamente com o que, nem se julgue necessário saber. Parece mesmo é que se quer dar um basta a “tudo isso que está aí”: das negociatas políticas intestinas aos descasos com a educação, saúde, segurança e transporte, acumulados e justificados na esteira dos avanços que o país alcançou nos últimos anos.


Se a classe média busca expressão política nas ruas, é que não há, pelo menos no momento, outra via confiável. Mais descredenciados que os vândalos infiltrados nas passeatas e os policiais perversos atirando contra multidões estão os políticos. Exemplo disso é a exclusão e o emudecimento de todos num contexto político tão agudo. Calam-se como que assumindo sua inocuidade na discussão dos verdadeiros interesses do país. Aí talvez esteja a chave da questão: a política atual, isolada em seus próprios interesses, distanciou-se da vida real (o que inclui o mundo virtual). A retomada da via democrática, como sempre, o povo só conquista nas ruas. Até que a política mude, a rua continuará sendo a maior (arqui)bancada do Brasil!

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Resenha sobre "O Campanário da Padroeira: subsídios para a história de Colinas", de autoria do historiador Paulo Eduardo de Sousa Pereira


O livro O Campanário da Padroeira: subsídios para a história de Colinas, de autoria do historiador Paulo Eduardo de Sousa Pereira é uma pesquisa cuidadosa, metódica e fundamentada em informações consistentes sobre a história de Colinas. Até agora é a mais completa pesquisa já realizada sobre o aquela região ducentenária do Maranhão. Prof. Paulinho, como é conhecido pelos seus alunos, é graduado em história pela UEMA e professor de ensino médio em Colinas, mas seu livro tem as características de uma boa tese de doutorado. A diferença está no fato de que é muito melhor de ler do que uma tese. A qualidade literária impressa em sua escrita dá ao livro ares de romance, o que o torna emocionante e prazeroso. É um livro espirituoso no qual sentimos a presença da alma do autor, sua paixão pela história, sua devoção a Nossa Senhora da Consolação, sem perder a envergadura científica.Longe de ser um livro provinciano, como poderia sugerir o tema à primeira vista, os fatos históricos locais de que trata estão sempre expostos sobre uma contextualização do mesmo período na história nacional e regional. Assim, a ocupação do Sertão dos Pastos Bons, que dá origem a Colinas, é historicamente situada na expansão pastoril advinda da Bahia e de Pernambuco, na promoção da navegação do Rio Itapecuru resultante dos avanços econômicos das reformas pombalinas e na implantação do Arraial do Príncipe Regente. Este último fundado por ordem do Governador do Maranhão, D. Francisco de Melo Manuel da Câmara, em 1807, próximo ao encontro do Rio Alpercatas com o Itapecuru, torna-se o primeiro núcleo de povoamento da região, habitado à época por 215 pessoas.Apesar da pesquisa documental em primeira mão, das fontes arquivísticas, da tradição oral e das entrevistas realizadas, o autor não abre mão do diálogo com as obras já publicadas sobre Colinas. São amplas as referências a autores como José Osano Brandão, Wilson Coimbra, Antônio Fonseca dos Santos Neto, Alice Coelho Raposo, José Sérgio dos Reis Júnior e Antônio Luiz de Macedo Costa que nos presenteia com maravilhoso prefácio.Como colinense não posso esconder que algumas sutilezas da narrativa, como uma varinha de condão, despertaram flashes da minha memória a cada momento. Desta forma, a “Fazenda Grande” aprendida no “Primário” do Grupo Escolar João Pessoa, torna-se viva pelas ilustrações do autor. A morte de José Pereira de Sá no Piquete, em defesa de sua prole feminina, dá um tom dramático ao episódio da Balaiada. A sabedoria feminina e o poder religioso de Dona Cândida de Xavier de Matos como elementos fundantes da nossa cultura fazem lembrar a religiosidade e a força de nossas avós.
O ponto alto do livro é mesmo o Campanário (aqui entendido como uma ampla metonímia) e tem um efeito imediato sobre a memória do leitor colinense. As descrições da “festa de dezembro” nos levam desde os apitos feitos com as palhas das barracas do arraial até o leilão na igreja matriz. Dos padres Macedo, Felix e Damasceno às irmãs Terezinha e Consuelo. Da festa do vaqueiro e da corrida de cavalos às festas religiosas nos povoados. O Campanário da Padroeira é um livro obrigatório para qualquer colinense, uma excelente referência para todo historiador e uma ótima leitura para os amantes de literatura e de cultura brasileira.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Reportagem da Veja sobre o CINEC de Colinas (1968)

A aclamada reportagem na Revista Veja sobre o Cinec de Colinas-Ma. Eis a reportagem publicada na Veja nº 3 de 25 de Setembro de 1968, na íntegra.Trata-se da incrível experiência educacional de um pequeno município do Maranhão, na década de 60, baseada nas ideias de Paulo Freire e na criatividade, coragem e competência do Padre Macedo. A experiência rendeu frutos e é preciso reaproveitá-la agora!



terça-feira, 24 de abril de 2012

Freud e os cachorros de Cervantes

            Já é bastante conhecida a história de que, ainda na infância, Freud passara das leituras bíblicas para as de Shakespeare e Cervantes. Que, na adolescência, viajara insone pelo magnífico mundo da literatura deixando em sua vasta correspondência rastros do seu estilo. Legando assim um conjunto de textos pessoais cujo valor ultrapassa o da informação biográfica. As marcas deixadas em suas cartas juvenis sugerem uma formação literária precoce que prenunciam sua sagacidade futura na abordagem de questões psicológicas. Elas nos dão a impressão de que cada virada de página desfolhava um conjunto de questões que, numa fase ulterior, seriam as fontes incitantes de seu espírito engenhoso.
            Tão complexa e romanesca quanto a estrutura familiar na qual Freud se constitui são as relações literalmente familiares que estabeleceu com suas obras, autores e personagens preferidos. Por vezes, cognominando a si próprio com nomes de personagens de romances, noutras designando suas crias teóricas com sobrenomes da estirpe literária.
            Em toda extensão de sua obra o Pai da psicanálise dá a ver o gosto que faz em estabelecer os laços de aliança desta sua filha dileta com a tradição literária. O complexo psicológico mais importante, sem o qual, segundo ele próprio, a família da psicanálise estaria dissolvida, recebe o nome de “Édipo”. Noutra cena clássica de sua vasta obra, o personagem da mitologia grega “Narciso” inspirar-lhe-ia outro conceito fundamental, este batizado com o epíteto de “narcisismo”.
            A formação cultural de Freud tem, portanto, na literatura um traço tão definido que, se não podemos atribuir-lhe o papel de esteio, ou mesmo de andaime do edifício da psicanálise, também não podemos negar que é a partir da littera, da natureza literária de sua obra, presente em sua escritura que se desenvolvem a forma, o estilo e, porque não dizer, a beleza e a garantia de sua teoria.
            Na adolescência, em sua correspondência escrita em castelhano, e dirigida a E. Silberstein, Freud assina com o cognome Cipion e trata o amigo com quem se correspondia como Berganza, nome de dois cães personagens de um conto de Cervantes. Durante o curso de medicina afirmava que preferia Cervantes aos livros de anatomia cerebral.  Podemos supor que estaria já aí, na preferência pela disposição à “escuta” de Cipion e pelo “desejo de falar” de Berganza, os rudimentos de um dilema bem posterior, questão fundadora da psicanálise: a saber, a importância conferida à palavra em detrimento do puro funcionamento orgânico das estruturas neurais. Sem dúvida, não podemos deixar de reconhecer no diálogo presente em El coloquio de los perros o prenúncio do que mais tarde viria se repetir na fundação da própria psicanálise, a inauguração de um tratamento que consiste fundamentalmente num sujeito que escuta a fala do outro, em detrimento de uma abordagem que atribuísse aos sofrimentos subjetivos razões puramente orgânicas.
            Marialzira Perestrello fez alusão a esta questão no livro “A Formação Cultural de Freud” citando um trecho do diálogo entre os dois cães personagens de Cervantes que extraímos e apresentamos abaixo:
 
Berganza:  Desde que tive forças para roer um osso, tive o desejo de falar, para dizer coisas que depositava na memória e aí, antigas e muitas, ou se amorteciam ou as esquecia. Porém agora, que tão sem pensar, me vejo enriquecido deste dom divino da fala, penso gozá-lo e aproveitar-me dele o mais que possa, apressando-me em dizer tudo aquilo de que me lembre, ainda que seja de um modo atropelado e confuso.
Cipión (mais adiante): Fala até que amanheça ou até que nos ouçam, que eu te escutarei de muita boa vontade sem impedir-te, senão quando ache necessário.
            No atual estágio da ciência, sobretudo em sua feição tecnocientífica ou fáustica- para ficarmos na seara de nossa preferência- advogar que em excertos literários estariam as fontes primárias de algum saber de aplicação clínica, poderia ser tomado como uma leviandade, não fosse o peso que tem o fato de os homens continuarem a recobrir seus neurônios com símbolos das mais variadas tintas. Que tanto preenchem sua humanidade quanto o mundo cheio de preás da cadela Baleia de Graciliano.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

A Aba do paPoÉtico

Zema Lança
Papai baba
A aba do paPoÉtico
Outrora etílica
Ágora ética
A trupe trepa
Na (f) ilha
Quatrocentona
O Paulão do Poeta.
Na asa do carcará
O sema do Zema geme
Poiésis
Engenhos
da gema
decantada
D
E
G
L
U
T
I
D
A
Com o fel do fidalgo.
Da aba do seu chapéu
Cai Coxinho canibal
Novilho brasilnu
De sotaque modernista
De dentição tropical
Que surfa na aba - poru
Só pra comer Explorer
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