Acidentes de trânsito que ceifam milhares de vidas são
comumente tratados como fatalidade. Temos um conceito do acidente (a própria terminologia
já indica) ora como obra do acaso, ora como imprudência dos condutores (o que
sugere um contrassenso). Baseados nisso, optamos por abandonar a compreensão de
suas condições geradoras. Deixamos de considerar suas causas mais profundas,
tais como os modos de convivência nas vias públicas, a gestão do trânsito, as
condições de segurança dos veículos, a manutenção das estradas, a própria
educação do condutor, os mecanismos de fiscalização, o socorro, as condições de
atendimento médico-hospitalar etc.
Ainda que o acidente comporte a dimensão da
imprevisibilidade, não se pode descartar a trama da qual ele resulta, urdida
por diversos fatores. Basta olharmos
para a nítida correspondência entre a elevada e constante incidência de
acidentes de trânsito em determinadas cidades e seus fatores causais.
Perguntamos: um menor inabilitado, embriagado, que pilota uma moto em alta
velocidade, sem capacete, numa via sem sinalização, movimentada e esburacada, numa
cidade em que as instituições não gerem, nem fiscalizam o trânsito, tem
raríssimas ou grandes as chances de tornar-se parte das estatísticas de
mortalidade? Sabemos que esta situação hipotética repete-se a olhos vistos em
muitas cidades do interior do estado.
As estatísticas do Centro
Brasileiro de Estudos Latino-Americanos – CEBELA publicadas em 2013, no
documento Mapa da Violência/trânsito, apontam o município maranhense de
Presidente Dutra em primeiro lugar nas taxas de mortes no trânsito por 100 mil
habitantes. Dentre os 1.663 municípios brasileiros com mais de 20 mil habitantes,
Presidente Dutra alcançou a maior marca com taxa de 285,7 óbitos por 100 mil
habitantes no ano de 2011. Se somarmos esse número ao de outro município da
mesma região, Colinas com taxa de 45.7 óbitos, chegaremos ao índice alarmante
de 331,4 óbitos por 100 mil habitantes, na região. Se compararmos este índice
com o de mortalidade por arma de fogo em São Luís no mesmo período (que
corresponde à taxa de 31,1 óbitos por 100 mil habitantes), podemos afirmar que,
na região de Presidente Dutra e Colinas, o trânsito possui um índice de
mortalidade 10 vezes maior que a criminalidade na capital maranhense (São Luís
é considerada a 15ª cidade mais violenta do mundo). A extensão do problema torna-se
ainda maior, se considerarmos que o estado como um todo triplicou o número de
óbitos em acidentes de trânsito na última década.
Quem conhece o trânsito
de algumas cidades do interior maranhense percebe a completa ausência do poder
público em suas funções de educação, fiscalização e gestão do trânsito. O
aumento considerável do número de veículos (especialmente de motos) tem gerado
uma demanda de gestão do trânsito não atendida nessas cidades. Em face do caos
instalado, cabe ao indivíduo usuário a responsabilidade de um comportamento
adequado. É como o diretor da escola exigir bons resultados de um aluno cujos
professores tenham se omitido de ensiná-lo a ler e escrever.
Os pesquisadores do Centro Brasileiro de Estudos
Latino-Americanos – CEBELA consideram que acidentes de trânsito são evitáveis,
se adotadas medidas apropriadas de segurança. Em primeiro lugar, dizem eles, é
preciso que o Estado brasileiro adote uma estratégia que conceba como eticamente
inaceitável que alguém morra ou fique gravemente ferido no trânsito. Uma estratégia
contrária àquela vigente em nosso país, que foca a culpa pelo acidente apenas nos
usuários, eximindo de responsabilidade educadores, planejadores, gestores e
instituições civis.
O poder público deve compartilhar as responsabilidades
por esses índices pavorosos de mortalidade em nossos municípios. Visto que, a
permanecer a absoluta negligência demonstrada pelas eloquentes estatísticas, corremos
o risco de reduzir a máquina administrativa pública à calamitosa condição de
máquina mortífera.