Vejam o burro. Que mansidão! Que
filantropia! Esse puxa a carroça que nos traz a água, faz andar a nora, e
muitas vezes o genro, carrega fruta, carvão e hortaliças, - puxa o bond, coisas
todas úteis e necessárias. No meio de tudo isso apanha e não se volta contra
quem lhe dá. Dizem que é teimoso. Pode ser; algum defeito é natural que tenha
um animal de tantos e tão variados méritos. Mas ser teimoso é algum pecado
mortal? Além de teimoso, escoiceia alguma vez; mas o coice, que no cavalo é perversidade,
no burro é um argumento, ultima ratio.
Esse é o
trecho de uma crônica de Machado de Assis, datada de 1876. Pela atualidade, bem
serve de epígrafe ao presente artigo, pois alude à questão aqui abordada.
Questões que giram estonteantes em torno da leitura no Brasil.
E por ainda
se falar em burro, embora a motocicleta esteja a sepultar o animal, quero viva
a utopia de suplantar o símbolo da ignorância por meio do livro. A 3ª edição da
pesquisa Retratos da leitura no Brasil, entretanto, aponta que temos 88 milhões
de leitores (pessoas que teriam lido pelo menos um livro nos três meses
anteriores à pesquisa), apenas 50% da população. Como Machado, sou afeito a
estatísticas, pelos mesmos argumentos com que o grande escritor defende os
números: “Eles dizem as coisas pelo seu nome, às vezes um nome feio, mas não
havendo outro, não o escolhem. São sinceros, francos, ingênuos”.
Assim, se
considerarmos que hoje o Brasil tem plenas condições produtivas para avançar
economicamente e socialmente. Que somos a 6ª economia do mundo e que vivemos
sob uma constituição democrática, conquanto todos concordem que as luzes
estejam apagadas na política. É fato que nossa constituição garante ao povo o
poder de decidir seu destino, por mais que essa escolha possa desagradar a
muitas autoridades intelectuais.
Baseados no
pressuposto de que boas escolhas não devem prescindir inteiramente da razão e
do conhecimento, nos perguntamos: nas próximas eleições, o eleitor (não
necessariamente leitor) terá realmente conhecimento da realidade brasileira
para escolher governantes, legisladores, projetos que apontem para a superação
da incredulidade política e dos problemas sociais que vivenciamos?
A
essa pergunta os números responderiam ainda com candura (apenas um pouco
diferente do que responderam a Machado no Império): a nação não quer ler.
Embora relativamente alfabetizada (a taxa de analfabetismo caiu
consideravelmente nos últimos 20 anos, para os atuais 8,7%) 50% da população
não lê. Simplesmente, porque não tem interesse, 70% dos entrevistados assim
responderam à pesquisa. Mesmo desconsiderando o fato de que se dizer leitor não
é realmente merecer esse título, o indicador de 50% de eleitores não leitores não
prenuncia mudanças políticas encorajadoras.
Ora, abrir
mão do livro representa, no mínimo, abrir mão de um método milenar, talvez o
mais eficaz até agora, de conhecimento da realidade. Fica-se refém de histórias
de Sherazade contadas na televisão, onde a popularidade submete a ética à
retórica. Enfim, se a nação não sabe ler, não sabe ler a nação. 50% dos
cidadãos “votam do mesmo modo que respiram: sem saber porque, nem o quê. Votam
como vão à festa”, podemos afirmar com Machado.
Sem a interdiscursividade própria da leitura,
os discursos soam como verdades monolíticas, incontestáveis, mesmo que não
passem de embustes. Sem a leitura, na verdade, sequer dá para reconhecer um
plágio (muito menos para plagiar um grande autor). Mesmo a estatística, sendo informação
pura e simples, em geral é lida de forma distinta de acordo com a tonalidade ou formação política do leitor. Portanto, contra a evidente autoridade dos números apontada por Machado de Assis, restaria
ainda a interpretação, a leitura. Aos que desprezam a leitura, porém, resta
apenas a ultima ratio, o coice.