sábado, 9 de maio de 2009

A Caneta e a Palheta





Insiste em mim um lapso. Perco sempre canetas. Não apenas as perco como elas próprias tratam de se livrar de mim. A última foi quase um investimento. Muito cara, inventou de emperrar a engrenagem que se esconde sob aquela bela estrutura de metal que faz a diferença na hora de comprar. É sempre assim, quando começo um chamego com minha nova caneta, logo um defeito surge ou um esquecimento trata de nos afastar. Isso não passaria de uma deformidade pessoal ou um estranho gosto por perder canetas, se não fosse outra "psicose" igualmente curiosa.


Para além de minha consciência há uma aptidão, quase uma autoridade em nunca perder as palhetas da minha solitária guitarra, embora esteja esta sempre mais próxima do canto do que do peito. Contudo, quando empunho a abandonada guitarra, como uma espécie de São Longuinho, ela dá sempre um jeito de fazer reaparecer aquela palheta há muito perdida. Cheguei a acumular várias de tanto repô-las e logo em seguida reencontrá-las. Tenho uma linda, marrom com rajadas cor de fogo. Despretensiosa, já está comigo há mais de oito anos. Intriga-me encontrá-la repentinamente quando pensava já tê-la perdido.


Porque amiúde perco canetas e preservo palhetas? Há perguntas cujas respostas estão tão escondidas que nem São Longuinho nos ajuda a achar. Respostas-canetas que se perdem para sempre. Teremos que ir mais fundo na história dos deuses. Talvez, Apolo com o auxílio de sua irmã Ártemis, deusa da caça, nos indique como encontrar uma resposta. Com seu caráter multifacetado, Apolo foi identificado como deus da música, da poesia e das artes. Sendo o patrono do Oráculo de Delfos, era o deus dos adivinhos e profetas.


Dentre as muitas narrativas que tem este deus grego como protagonista, consta-se que Apolo recebeu de Hermes uma lira que este havia criado com o casco de uma tartaruga e com as tripas do gado que havia roubado do próprio Apolo. Indignado com o furto, Apolo exigiu de Maia, mãe de Hermes, que seu filho devolvesse o rebanho. Enquanto a discussão prosseguia, Hermes começou a tocar a lira, a música foi tão admirada por Apolo que este perdoou Hermes pela pilhagem.


Daí a solução do enigma da caneta e da palheta. Com sua magia melodiosa, a música acha o que não se procura, junta o que se tomou por separado, aproxima os longínquos e apazigua os deuses. Assim, a guitarra encontra a palheta.


A caneta, por sua vez, não tarda em perder-se. O papel nu, mudo e envergonhado dela se esconde sem promessas. Enquanto a palheta encontra, a caneta não pára de se perder. Assim, para reencontrá-la, é preciso, primeiro, escutar a música reprimida nestas caraminholas literárias.

5 comentários:

Fafá disse...

A música nos invade e muita das vezes sem permissão alguma...apenas invande e encanta.
E tenho certeza que no frigir dos ovos, seu amigo Freud explica as palhetas, as canetas, a guitarra....rs
Bj

Mardônio Pessoa disse...

SOU UM LEITOR DIÁRIO DE ALGUNS BLOGS. DESCOBRI O TEU HOJE. GOSTEI DE VERDADE, PRINCIPALMENTE AS PALAVRAS SINCERAS QUE FALASTE SOBRE MEU AMIGO RICARTE.
ABRAÇOS.
MARDÔNIO.

Paula Nadler disse...

Texto mais lindo ainda. Você deveria ser escritor!

Jarbas Couto e Lima disse...

Obrigado, Mardômio e Paula, pelas ilustres visitas!!!
Um texto só adquire sentido quando ele é lido. O mais incrível é que cada um, ao lê-lo, empresta um colorido especial a ele. Assim, suas leituras são um complemento, uma interação entre nossas mentes, mesmo sem nos conhecermos pessoalmente.
Obrigado, mais uma vez, pelo incentivo.

Ricardo Cuba disse...

Cara vc escreve bem demais. Realmente o texto é belo e rico.
Mais bonito ainda é a sua faceta implícita da neurose. Existe uma tendência em repudiarmos inconscientemente aquilo que desde cedo nos remonta a uma obrigação ou necessidade enquanto o refúgio e o prazer que sempre desejamos nos aproxima mais do que queremos. Mais antes perder as canetas do que a orelha.
Um grande abraço.