terça-feira, 26 de maio de 2009

Paradoxo Reflexo



Com a licença dos iniciados no tema, faço aqui uma breve reflexão sobre nossa dita rebelde (a meu ver, simplesmente, birrenta) ilha de São Luís. Cultural, econômica e geograficamente distante do interior, a capital, longe de ser uma síntese do Maranhão é marcada por peculiaridades em seu jeito de ser miserável, suja, doente, ignorante e, ao mesmo tempo, bela, romântica, literária e até mesmo rica.
À margem destes traços negativos, é comum vermos São Luís cada vez mais sendo apresentada e reconhecida como a capital da cultura popular. Seja esta cultura popular higienizada, espetacularizada ou não. Porém, para além do que os mitos nos contam, a nosso ver, há, em torno da ilha, um cordão etnocêntrico de valorização exagerada de exotismos de sua cultura “popular” e “histórica” que distancia-nos de valores universais cultuados no mundo “civilizado”. Não haveria nenhum problema em supervalorizar a cultura popular local, baseados na idéia de que transformá-la em riqueza atrairia o olhar dos outros, se não fosse esta uma forma também de nos fazer acreditar em lorotas bem modernas e de conseqüências nefastas em nosso cotidiano.
Na supervalorização de São Luís como capital da cultura popular estamos diante de uma estratégia nada inocente que consiste em exacerbar algo, justamente, para escondê-lo. Em primeiro lugar, podemos perguntar-nos: sendo a cultura popular uma riqueza, por que seria necessário inflacioná-la aos olhos dos outros para que fosse vista? Fica-se como em desenho animado japonês, exagerando o tamanho do olho dos personagens apenas para denunciar quão diminuto ele é na realidade. O mais grave é que esta tentativa de chamar a atenção do outro para a grandiosidade maquiada de nossa cultura popular - uma atitude intuitiva comum a diversos povos- tornou-se o eixo de nossas políticas culturais locais.
Desta forma, o popular, simplesmente por ser popular, é colocado exageradamente acima de qualquer outra expressão da cultura tomado em sentido amplo. É claro que há o universal no popular, mas aqui não são os consensos, as honestidades, as harmonias, as poesias, a simplicidade, a natureza, inteligência que são cultuados nele. A primeira vista, o que justifica a idéia de colocar São Luís como capital da cultura “popular” é a suposição de que, por ser esta cultura uma expressão do “nosso” povo, atual ou antepassado, isto faria  dela a expressão mais autêntica de nossa identidade e quiçá um produto inédito e exótico para o turismo.
Nos últimos anos, talvez em conseqüência da globalização, vemos um fenômeno complementar, ainda que estrangeiro, se instalar com uma falsa superação desta estratégia. Uma espécie de invasão do internacional popular e da tecnologia na cultura local, numa  forma de inclusão da nossa cultura no mercado de bens simbólicos. Em diversas frentes esta presença é sentida, a saber: espetáculo e tecnologia na música (banda de forró, Marafolia, sertanejos, radiolas de reggae, hip hop) popularização do vídeo e tecnologia de gravação (festivais, pirataria), o discurso da Nova Administração e sua companheira inseparável, a gerundização (“Eu posso estar fazendo um desconto pra você ou você pode estar comprando parcelado!!”), o estilo consumis ta nouveau riche da classe média, etc.
Ao tentar conciliar o internacional popular com a cultura popular local, a São Luís contemporânea torna-se, antes de tudo, um paradoxo, mas não abre mão da estratégia cultural anteriormente adotada. Nesta nova forma de valorização do popular, projeta-se o popular e o histórico revestidos de novo em plano expandido. Ao mesmo tempo, continua-se a ocultar o nítido contraste entre a miséria e a luxuosidade, a carnaubeira obtusa e a avenida retilínea esburacada, a direita atropelando-se em cobiça e a esquerda vazia (falo do trânsito), a Oligarquia (um gênero político comum por aqui) e o Estado. Como num espelho, opostos se confrontam e se ad/miram paralisados pelo narcisimo.
Este paradoxo reflexo serve como uma metáfora, como uma lente capaz de ampliar a oposição entre imagens geralmente distorcidas em dimensões opostas de forma a uma ocluir a outra. Assim a luxuosidade dos prédios e carros escondem progressivamente a miséria tão próxima deles. A Oligarquia oblitera o Estado, a direita lenta e ambiciosa se oculta na esquerda vazia, a carnaubeira obtusa preenche o espaço legítimo das palmeiras. Onde o Sabiá háverá de cantar? Que Sabiá?

8 comentários:

ricarte disse...

Este sim, é o texto que faltava. Uma das mais lúcidas reflexões que já lí sobre nossa terra. Preciso, irônico, cortante e belo.

grande abraço,

Celijon Ramos disse...

Um exemplo que talvez corrobe o que escreveste é o seguinte: 2009 Ano Cultural da França no Brasil. Acho que foi em 2005 o inverso. O Brasil da França. Ouve uma agitação tamanha na classe dos artistas do Brasil e de algum modo passaram a imagem do brasil além das mulatas e do carnaval. Lenine foi fantástico, Maria Rita, Jovino Santos... O brasil mostrou diversidade e não monocordia.
Hoje. Em São Luis, a abertura do Ano da França... praticamente só teve "artista do Maranhão" e apenas uma única atração externa. meio assim assim. Apresentou-se em companhia de um violão no teatro. Será que a autoridade organizadora entendeu que por São Luís ser "colonizada por Franceses" isso já bastava. Afinal a cultura da França já estava aqui e ponto. Creio que sim, senão, Gerude e Ronald Pinheiro jamais teriam composto aquela música de carnaval que diz que " São Luís vai virar Paris" mas avisa que "está por um triz".
Revela uma grande vontade de estar, sem se importa o que se é. Talvez por isso aqui tudo se superestima. Tanto aos mandantes quanto aos subjugados.
Abraço!

Celijon Ramos disse...

Errata: corrobore; o Brasil na França; sem se importar com o que se é
Cara é muito erro.
Tchau!

Érico Cordeiro disse...

Mestre Jarbas,
Tudo já foi dito! Quedo-me a refletir sobre a beleza e a profundidade do teu texto. E a saudar a tua coragem, pois mexeste em um tema caríssimo à direita obtusa e à esquerda vazia: essa pretensa "riqueza" cultural.
Um discurso que sempre me soou falso como uma toada do Barrica ou uma nota de três dólares - e aí, euzinho escrevendo agora sobre jazz, daqui a pouco serei perguntado pelos patrulheiros de plantão se já recebi meu salário da embaixada americana (como sucedeu com o grande crítico musical José Domingos Raffaelli, que relata a história em um comentário feito no JAZZ + BOSSA)!!!!
Você desnuda o rei e brada a sua nudez em altíssimo e excelente som e é por essas e outras que orgulho-me de privar da sua amizade!
Grandecíssimo beijo.

Jarbas Couto e Lima disse...

Érico, Ricarte e Celijon,
Vocês não são os três mosqueteiros, é fato. Mas descobri outro dia que as Três Marias são astros enormes, muito maiores que a terra.É assim que me sinto em relação a vocês.Um grão de areia nesse universo internáutico sendo observado a partir de três pontos de vista tão grandiosos. Saibam que daqui também eu os observo, vejo e sinto toda a poesia que daí emana.
Obrigado pela visita!
Um Abraço!
Jarbas

Ricardo Cuba disse...

Poizé, o texto expande nossa percepção da realidade implícita dessa supervalorização do popular. A riqueza pode até ser cultural mas os aspectos subjacentes não, pois os interesses políticos e econômicos não estão voltados para os protagonistas só para as "séries".
Um abraço.

Jarbas Couto e Lima disse...

Caro Ricardo,
Obrigado pela visita. Estou esperando o seu.
Um abraço!
Jarbas

Tainha Maranhão disse...

Jarbas, parabéns pelo seu excelente texto. A sua lucidez e imparcialidade ao descrever São Luís é fantástica. Muito bom! Não conhecia o seu blog, mas já estou seguindo-o e vou adicioná-lo aos meus. Um abraço,