domingo, 20 de abril de 2014

Máquina mortífera

         Acidentes de trânsito que ceifam milhares de vidas são comumente tratados como fatalidade. Temos um conceito do acidente (a própria terminologia já indica) ora como obra do acaso, ora como imprudência dos condutores (o que sugere um contrassenso). Baseados nisso, optamos por abandonar a compreensão de suas condições geradoras. Deixamos de considerar suas causas mais profundas, tais como os modos de convivência nas vias públicas, a gestão do trânsito, as condições de segurança dos veículos, a manutenção das estradas, a própria educação do condutor, os mecanismos de fiscalização, o socorro, as condições de atendimento médico-hospitalar etc.
Ainda que o acidente comporte a dimensão da imprevisibilidade, não se pode descartar a trama da qual ele resulta, urdida por diversos fatores.  Basta olharmos para a nítida correspondência entre a elevada e constante incidência de acidentes de trânsito em determinadas cidades e seus fatores causais. Perguntamos: um menor inabilitado, embriagado, que pilota uma moto em alta velocidade, sem capacete, numa via sem sinalização, movimentada e esburacada, numa cidade em que as instituições não gerem, nem fiscalizam o trânsito, tem raríssimas ou grandes as chances de tornar-se parte das estatísticas de mortalidade? Sabemos que esta situação hipotética repete-se a olhos vistos em muitas cidades do interior do estado.
          As estatísticas do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos – CEBELA publicadas em 2013, no documento Mapa da Violência/trânsito, apontam o município maranhense de Presidente Dutra em primeiro lugar nas taxas de mortes no trânsito por 100 mil habitantes. Dentre os 1.663 municípios brasileiros com mais de 20 mil habitantes, Presidente Dutra alcançou a maior marca com taxa de 285,7 óbitos por 100 mil habitantes no ano de 2011. Se somarmos esse número ao de outro município da mesma região, Colinas com taxa de 45.7 óbitos, chegaremos ao índice alarmante de 331,4 óbitos por 100 mil habitantes, na região. Se compararmos este índice com o de mortalidade por arma de fogo em São Luís no mesmo período (que corresponde à taxa de 31,1 óbitos por 100 mil habitantes), podemos afirmar que, na região de Presidente Dutra e Colinas, o trânsito possui um índice de mortalidade 10 vezes maior que a criminalidade na capital maranhense (São Luís é considerada a 15ª cidade mais violenta do mundo). A extensão do problema torna-se ainda maior, se considerarmos que o estado como um todo triplicou o número de óbitos em acidentes de trânsito na última década.
            Quem conhece o trânsito de algumas cidades do interior maranhense percebe a completa ausência do poder público em suas funções de educação, fiscalização e gestão do trânsito. O aumento considerável do número de veículos (especialmente de motos) tem gerado uma demanda de gestão do trânsito não atendida nessas cidades. Em face do caos instalado, cabe ao indivíduo usuário a responsabilidade de um comportamento adequado. É como o diretor da escola exigir bons resultados de um aluno cujos professores tenham se omitido de ensiná-lo a ler e escrever.
Os pesquisadores do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos – CEBELA consideram que acidentes de trânsito são evitáveis, se adotadas medidas apropriadas de segurança. Em primeiro lugar, dizem eles, é preciso que o Estado brasileiro adote uma estratégia que conceba como eticamente inaceitável que alguém morra ou fique gravemente ferido no trânsito. Uma estratégia contrária àquela vigente em nosso país, que foca a culpa pelo acidente apenas nos usuários, eximindo de responsabilidade educadores, planejadores, gestores e instituições civis.

O poder público deve compartilhar as responsabilidades por esses índices pavorosos de mortalidade em nossos municípios. Visto que, a permanecer a absoluta negligência demonstrada pelas eloquentes estatísticas, corremos o risco de reduzir a máquina administrativa pública à calamitosa condição de máquina mortífera.   

sábado, 29 de março de 2014

A Política Oprimida

                                                   
           Corrupção. Incompetência. Ganância pelo poder. Estes são os atributos mais comuns que os críticos apontam nos políticos. Amiúde, os mesmos predicados presentes nas críticas que costumamos ver endereçadas a nossa sociedade. Surge, então, a pergunta: tais qualidades seriam reflexos da sociedade, ou as mazelas da sociedade provêm da inépcia dos políticos? Em primeiro lugar, é preciso dizer que o julgamento popular do desempenho e comportamento de políticos, na maioria das vezes, incorre numa contradição. Em definição clássica, a Política seria a arte e a ciência de governar a sociedade; logo os culpados pelos desgovernos da sociedade, num sistema representativo, deveriam ser os políticos de um modo geral. E é isso mesmo que as pesquisas do IBOPE, realizadas depois dos protestos de 2013, mostram. Os dados da pesquisa revelam que 60% da população não têm confiança nos partidos políticos nem no Congresso Nacional e 56% não confia no Governo Federal. Enquanto isso, instituições como os bombeiros, as igrejas e as forças Armadas possuem alto índice de aprovação. Conclui-se que as instituições sociais continuam a gozar de prestígio que no Sistema Político escasseia.  
Críticas cotidianas e fáceis a políticos e a governos têm suas justificativas. Embora a corrupção endêmica e a incompetência não sejam atributos exclusivos dessa esfera da vida social. Mas para ir além da crítica fácil, é preciso filosofar um pouco e perguntar-nos de onde vem a separação atual entre a Política e os políticos. Entre governos e políticos de um lado (ou seja, a política representativa) e a própria Política (enquanto uma dimensão da vida social) de outro.
Esta separação entre Política e políticos parece explicar a eleição e o sucesso de público da própria Presidenta. Vindo dos bastidores da governança ela se elegeu e parece governar mantendo distância do Congresso e dos partidos. Ou, pelo menos, é o que tenta parecer. O agravamento das condições sociais reais (na mesma direção do crescimento econômico) talvez tenha levado a esta separação. Vejamos um exemplo simples e eloquente: São Luís levou 348 anos para atingir a marca de 150.000 habitantes; antes do aniversário de quatrocentos anos, já havia chegado a um milhão de espremidos em ruas, avenidas, shoppings, hospitais, ônibus e bairros populosos. Num intervalo de 05 décadas a população cresceu mais de seis vezes, o que demorou três séculos e meio para alcançar. Considerado o ritmo de crescimento medido pelo IBGE, a cada década emergirá um contingente populacional igual ao que habitava a cidade na década de 1960. Se tomarmos a população da década de 1960 como unidade, teremos uma São Luís a mais em cada década vindoura. Bastante proporcional ao crescimento populacional é o numero de mortes por arma de fogo. De acordo com o Mapa da Violência 2013, na última década houve um crescimento de 267,4% neste indicador de violência. A cidade torna-se assim um desafio extraordinário para qualquer governança. E a Política para que serve?
É preciso destacar que problemas complicados como esses não estão nem no discurso, nem no horizonte de partidos políticos ou das câmaras legislativas. A expectativa de “soluções” (e não do necessário debate político para alcança-las) é depositada mais na governança do que na Política, o que se torna uma flagrante contradição. Nesse contexto, resta ao cidadão apenas denunciar e/ou pedir. Assim, para a finalidade de governança as ideologias e críticas sociais mais amplas são, muitas vezes, desprezadas. Oprimida pela urgência do real da sociedade em pânico, e impotente em seus mecanismos e discursos, a Política tende a se reduzir a disputas intestinas. E a ter decretada sua própria exclusão como forma de pensar destinos sociais. O matiz de cada “grupo” (fala-se mais de grupo do que de partido) que chega ao Governo apenas muda o foco embaçado da governança. Embora a alternância entre grupos possa representar alguma diferença no “jogo político”, a forma como está sendo jogado encerra a mesma incapacidade de produzir transformações sociais, políticas, econômicas significativas. A cada vez que um “grupo” derrota o oponente, resta-lhes a missão de devorar o prato frio da vingança: a administração de sua manutenção no poder e a gestão impossível da crise social crescente.
Por outro lado, num cenário político em que a Política torna-se infértil, resta o debate sobre os atributos dos líderes. Aí o palco apresenta-se livre para heróis, vilões e tragédias. No início dos anos 90, em meio a uma crise econômica, vivemos um Brasil em que a "opinião pública" era cegamente apaixonada pelo então "caçador de marajás". Não foi preciso esperar o terceiro ato para saber no que deu. Hoje, vemos um ministro do Supremo prestando-se ao mesmo papel. E ao que tudo indica, o herói da ocasião está, mais uma vez, a um passo da vilania.
Isto nos revela que apenas uma sociedade politicamente frágil não pode prescindir de heróis. Dependente de ilusões, numa escala que pode variar de totens a celebridades, ela pode sim abrir mão das instituições, da educação e da formação espiritual (ingredientes da tão sonhada ética).
Numa sociedade assim a impossibilidade da Pólis aniquila o cidadão (termo que vem do grego Politikós); A distância do Sistema Político em relação aos cidadãos na sociedade contemporânea apresenta consequências por demais eloquentes. O cidadão perdeu a capacidade de governar os negócios públicos. A distância entre representante e representado faz da política profissão, concurso público. Não havendo possibilidade de governar, a política reduz-se ao cinismo do poder para si. E a Cidade, ideal grego, transfigura-se num cogumelo atômico; quanto mais se expande, mais expressa a potência da bomba nela encravada.


sábado, 31 de agosto de 2013

Quase Rebus

       I
Que seres de c’Alma
Sabedoria
Cerraram portas
Calando aos poucos
O dessaber do m’Eu?

       II
Que polidez
Retorceu
Um
Desfeito
Pra
Em mil eras de Silêncios
Noutra Encarnação
Milenar Sujeito?

        III
Que des-ser 
Refechado de amor
A se projetar
No anteparo olhar de amariana?
Que velho marujo desertado de amar
Regressado  
ao Mar se Adriana? 


sábado, 20 de julho de 2013

A rua é a maior (arqui)bancada do Brasil.


Os protestos que vemos estourar nas principais capitais brasileiras ainda carecem de um entendimento mais profundo. Os cronistas políticos e intelectuais que costumam comentar esses fatos se dizem “atordoados”. Nem mesmo os governos sabem qual o sentido exato das manifestações. Podemos mesmo afirmar que esse sentido exato não existe.
Pelo que vemos, a mobilização inicialmente organizada do movimento social Passe Livre, em torno de reivindicações claras sobre revogação do aumento das passagens de ônibus, se difunde por intermédio das redes sociais e alcança dimensões inesperadas. Algumas questões debatidas cotidianamente nessas redes podem nos dar uma pista sobre a rápida expansão do movimento: abaixo à corrupção na burocracia e na política (em todos os partidos), não à violência urbana, por transportes públicos de qualidade, por escolas públicas decentes, por universidades em pleno funcionamento, pelo acesso a bens culturais de qualidade, contra o consumismo e a concentração de renda, pelo respeito e melhor salário para os professores, etc. tudo isso contraposto aos bilhões de reais investidos em projetos megalomaníacos para a Copa. Estes temas dão força ao discurso em rede que move as passeatas caudatárias das insatisfações.
Embora as redes sociais sejam importantes para a motivação e organização dos protestos, resta muito a ser explicado. Há um paradoxo intrigante: há muitas razões para o movimento acontecer, ao mesmo tempo em que não há nenhuma razão objetiva que explique as dimensões por ele alcançadas. Entre os ataques com balas de borracha de policiais paulistas a manifestantes (quinta-feira, 13/06) e a ida de multidões às ruas (segunda-feira 17/06), Ferreira Gullar publicou um artigo na Folha no qual ressalta o importante papel político que um pequeno grupo teatral, o Grupo Opinião, desempenhou na liderança da Passeata dos 100 mil. Segundo ele, tudo começou contra as ações localizadas de censura às peças teatrais e desembocou num movimento amplo contra a ditadura militar. Como no movimento atual, tudo começou pequenininho e foi tomando proporções monstruosas. A diferença mais surpreendente é que naquele momento, havia uma ditadura implantada. Fica a pergunta: estariam obstruídos os canais da expressão política hoje, mesmo que formalmente abertos?
Para responder a esta pergunta, é preciso, em primeiro lugar, reconhecer que, entre as margens do vandalismo e da violência policial, há um movimento forte e legítimo de expressão política da sociedade. Marcado pelo importante papel dos estudantes como seus líderes intelectuais, fazendo ressoar a voz rouca das ruas que já faz tremer governos. Os amplos setores da classe média relativamente esclarecida, insatisfeitos com os espetaculares absurdos midiáticos cotidianos, já veem na juventude (mais uma vez) capacidade e coragem de expressar sua indignação. Mesmo que não se saiba exatamente com o que, nem se julgue necessário saber. Parece mesmo é que se quer dar um basta a “tudo isso que está aí”: das negociatas políticas intestinas aos descasos com a educação, saúde, segurança e transporte, acumulados e justificados na esteira dos avanços que o país alcançou nos últimos anos.


Se a classe média busca expressão política nas ruas, é que não há, pelo menos no momento, outra via confiável. Mais descredenciados que os vândalos infiltrados nas passeatas e os policiais perversos atirando contra multidões estão os políticos. Exemplo disso é a exclusão e o emudecimento de todos num contexto político tão agudo. Calam-se como que assumindo sua inocuidade na discussão dos verdadeiros interesses do país. Aí talvez esteja a chave da questão: a política atual, isolada em seus próprios interesses, distanciou-se da vida real (o que inclui o mundo virtual). A retomada da via democrática, como sempre, o povo só conquista nas ruas. Até que a política mude, a rua continuará sendo a maior (arqui)bancada do Brasil!

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Resenha sobre "O Campanário da Padroeira: subsídios para a história de Colinas", de autoria do historiador Paulo Eduardo de Sousa Pereira


O livro O Campanário da Padroeira: subsídios para a história de Colinas, de autoria do historiador Paulo Eduardo de Sousa Pereira é uma pesquisa cuidadosa, metódica e fundamentada em informações consistentes sobre a história de Colinas. Até agora é a mais completa pesquisa já realizada sobre o aquela região ducentenária do Maranhão. Prof. Paulinho, como é conhecido pelos seus alunos, é graduado em história pela UEMA e professor de ensino médio em Colinas, mas seu livro tem as características de uma boa tese de doutorado. A diferença está no fato de que é muito melhor de ler do que uma tese. A qualidade literária impressa em sua escrita dá ao livro ares de romance, o que o torna emocionante e prazeroso. É um livro espirituoso no qual sentimos a presença da alma do autor, sua paixão pela história, sua devoção a Nossa Senhora da Consolação, sem perder a envergadura científica.Longe de ser um livro provinciano, como poderia sugerir o tema à primeira vista, os fatos históricos locais de que trata estão sempre expostos sobre uma contextualização do mesmo período na história nacional e regional. Assim, a ocupação do Sertão dos Pastos Bons, que dá origem a Colinas, é historicamente situada na expansão pastoril advinda da Bahia e de Pernambuco, na promoção da navegação do Rio Itapecuru resultante dos avanços econômicos das reformas pombalinas e na implantação do Arraial do Príncipe Regente. Este último fundado por ordem do Governador do Maranhão, D. Francisco de Melo Manuel da Câmara, em 1807, próximo ao encontro do Rio Alpercatas com o Itapecuru, torna-se o primeiro núcleo de povoamento da região, habitado à época por 215 pessoas.Apesar da pesquisa documental em primeira mão, das fontes arquivísticas, da tradição oral e das entrevistas realizadas, o autor não abre mão do diálogo com as obras já publicadas sobre Colinas. São amplas as referências a autores como José Osano Brandão, Wilson Coimbra, Antônio Fonseca dos Santos Neto, Alice Coelho Raposo, José Sérgio dos Reis Júnior e Antônio Luiz de Macedo Costa que nos presenteia com maravilhoso prefácio.Como colinense não posso esconder que algumas sutilezas da narrativa, como uma varinha de condão, despertaram flashes da minha memória a cada momento. Desta forma, a “Fazenda Grande” aprendida no “Primário” do Grupo Escolar João Pessoa, torna-se viva pelas ilustrações do autor. A morte de José Pereira de Sá no Piquete, em defesa de sua prole feminina, dá um tom dramático ao episódio da Balaiada. A sabedoria feminina e o poder religioso de Dona Cândida de Xavier de Matos como elementos fundantes da nossa cultura fazem lembrar a religiosidade e a força de nossas avós.
O ponto alto do livro é mesmo o Campanário (aqui entendido como uma ampla metonímia) e tem um efeito imediato sobre a memória do leitor colinense. As descrições da “festa de dezembro” nos levam desde os apitos feitos com as palhas das barracas do arraial até o leilão na igreja matriz. Dos padres Macedo, Felix e Damasceno às irmãs Terezinha e Consuelo. Da festa do vaqueiro e da corrida de cavalos às festas religiosas nos povoados. O Campanário da Padroeira é um livro obrigatório para qualquer colinense, uma excelente referência para todo historiador e uma ótima leitura para os amantes de literatura e de cultura brasileira.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Reportagem da Veja sobre o CINEC de Colinas (1968)

A aclamada reportagem na Revista Veja sobre o Cinec de Colinas-Ma. Eis a reportagem publicada na Veja nº 3 de 25 de Setembro de 1968, na íntegra.Trata-se da incrível experiência educacional de um pequeno município do Maranhão, na década de 60, baseada nas ideias de Paulo Freire e na criatividade, coragem e competência do Padre Macedo. A experiência rendeu frutos e é preciso reaproveitá-la agora!



terça-feira, 24 de abril de 2012

Freud e os cachorros de Cervantes

            Já é bastante conhecida a história de que, ainda na infância, Freud passara das leituras bíblicas para as de Shakespeare e Cervantes. Que, na adolescência, viajara insone pelo magnífico mundo da literatura deixando em sua vasta correspondência rastros do seu estilo. Legando assim um conjunto de textos pessoais cujo valor ultrapassa o da informação biográfica. As marcas deixadas em suas cartas juvenis sugerem uma formação literária precoce que prenunciam sua sagacidade futura na abordagem de questões psicológicas. Elas nos dão a impressão de que cada virada de página desfolhava um conjunto de questões que, numa fase ulterior, seriam as fontes incitantes de seu espírito engenhoso.
            Tão complexa e romanesca quanto a estrutura familiar na qual Freud se constitui são as relações literalmente familiares que estabeleceu com suas obras, autores e personagens preferidos. Por vezes, cognominando a si próprio com nomes de personagens de romances, noutras designando suas crias teóricas com sobrenomes da estirpe literária.
            Em toda extensão de sua obra o Pai da psicanálise dá a ver o gosto que faz em estabelecer os laços de aliança desta sua filha dileta com a tradição literária. O complexo psicológico mais importante, sem o qual, segundo ele próprio, a família da psicanálise estaria dissolvida, recebe o nome de “Édipo”. Noutra cena clássica de sua vasta obra, o personagem da mitologia grega “Narciso” inspirar-lhe-ia outro conceito fundamental, este batizado com o epíteto de “narcisismo”.
            A formação cultural de Freud tem, portanto, na literatura um traço tão definido que, se não podemos atribuir-lhe o papel de esteio, ou mesmo de andaime do edifício da psicanálise, também não podemos negar que é a partir da littera, da natureza literária de sua obra, presente em sua escritura que se desenvolvem a forma, o estilo e, porque não dizer, a beleza e a garantia de sua teoria.
            Na adolescência, em sua correspondência escrita em castelhano, e dirigida a E. Silberstein, Freud assina com o cognome Cipion e trata o amigo com quem se correspondia como Berganza, nome de dois cães personagens de um conto de Cervantes. Durante o curso de medicina afirmava que preferia Cervantes aos livros de anatomia cerebral.  Podemos supor que estaria já aí, na preferência pela disposição à “escuta” de Cipion e pelo “desejo de falar” de Berganza, os rudimentos de um dilema bem posterior, questão fundadora da psicanálise: a saber, a importância conferida à palavra em detrimento do puro funcionamento orgânico das estruturas neurais. Sem dúvida, não podemos deixar de reconhecer no diálogo presente em El coloquio de los perros o prenúncio do que mais tarde viria se repetir na fundação da própria psicanálise, a inauguração de um tratamento que consiste fundamentalmente num sujeito que escuta a fala do outro, em detrimento de uma abordagem que atribuísse aos sofrimentos subjetivos razões puramente orgânicas.
            Marialzira Perestrello fez alusão a esta questão no livro “A Formação Cultural de Freud” citando um trecho do diálogo entre os dois cães personagens de Cervantes que extraímos e apresentamos abaixo:
 
Berganza:  Desde que tive forças para roer um osso, tive o desejo de falar, para dizer coisas que depositava na memória e aí, antigas e muitas, ou se amorteciam ou as esquecia. Porém agora, que tão sem pensar, me vejo enriquecido deste dom divino da fala, penso gozá-lo e aproveitar-me dele o mais que possa, apressando-me em dizer tudo aquilo de que me lembre, ainda que seja de um modo atropelado e confuso.
Cipión (mais adiante): Fala até que amanheça ou até que nos ouçam, que eu te escutarei de muita boa vontade sem impedir-te, senão quando ache necessário.
            No atual estágio da ciência, sobretudo em sua feição tecnocientífica ou fáustica- para ficarmos na seara de nossa preferência- advogar que em excertos literários estariam as fontes primárias de algum saber de aplicação clínica, poderia ser tomado como uma leviandade, não fosse o peso que tem o fato de os homens continuarem a recobrir seus neurônios com símbolos das mais variadas tintas. Que tanto preenchem sua humanidade quanto o mundo cheio de preás da cadela Baleia de Graciliano.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

A Aba do paPoÉtico

Zema Lança
Papai baba
A aba do paPoÉtico
Outrora etílica
Ágora ética
A trupe trepa
Na (f) ilha
Quatrocentona
O Paulão do Poeta.
Na asa do carcará
O sema do Zema geme
Poiésis
Engenhos
da gema
decantada
D
E
G
L
U
T
I
D
A
Com o fel do fidalgo.
Da aba do seu chapéu
Cai Coxinho canibal
Novilho brasilnu
De sotaque modernista
De dentição tropical
Que surfa na aba - poru
Só pra comer Explorer
Navegador digital

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Anti-poesia

Anti-poesia
Bruta
O que seria?
Rua
Que engarrafa
Fumaça
Aço
Ódio
Pressa?
Dinheiro
Alfafa desses dias?
O que seria?
Falta de Us Top?
Riso triste de Botox?
Reality de fantasia?
Anti-poesia
O que seria?
Alegria tarja-preta?
O branco da Xenofobia
O show de todo dia
O pânico de proveta
Anti-poesia
Seria?

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

O Silêncio

O silêncio é fala fingida
Que faz sem querer falar
Corta a carne faminta
Clama ao querer calar

Fere ânsia lancinante
Sangra o sonho em sacrifício
O silêncio segue cortante
Sem contestar o suplício

Cala-se por elegância
Silencia por sapiência
Torna palavra-migalha
Alimento da esperança

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Letras castas

Letras mais esquivas!!
Roçam a pele da página
Lambem da fala os lábios
A oração subornam com perfumes   
Mas, bem que nuas, rejeitam a romança
Negam-me o que mais queria:
Um beijo de língua na boca da poesia

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Língua em silêncio

O silêncio do brinco em tua orelha
Roça em meus lábios fulgor incontido
Faz da língua intromissa centelha
Enquanto cantas obscenos gemidos
E intumesce a melodia inteira
da língua inefável
Que tanto mais fala ao fazer-se falo
Quanto escuta o ouvido
Ao ser lambido.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Oficina

Vício de consertar poemas
os feitos de mim
velhos, miseráveis
imploram por escrito: não cremas!
Vão pra oficina.
Com
certo
trato
tornam
se
abstratos
no torno
retorço
os retos
conformo
os tortos
liquefaço
concretos
eruditos
destroço.
Oficina de poemas:
nobre sina
serra verso
corta termo
prega rima
lavra dor.
Velhos poemas consertados,
quem os quer, Amor?

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Asfixia

                  (para Giselly, que o recitou no Festival Maranhense de Poesia Falada, em 1987)

Falta ar
Passam idéias sufocantes
todas pela metade
O coração é um tanque de guerra
a cabeça, um míssil desativado
a alma flutua sobre o prodre resto de corpo
sobre braços ocos sem a carne da paixão
veias gélidas,
         fúnebres
passos desatinados nas linhas da mão
os olhos abertos num quarto sem tua luz
sob o susurro do esquecimento
o silêncio toca o disco da tua voz
Para a oficina do ser eu
o ser tu já não é dito em mim
Sou um monumento europeu
ou um mendigo num sono de jardim?
Talvez seja o jornal que abraça o mendigo
talvez a ferrugem na flecha do cupido...

quinta-feira, 31 de março de 2011

Samba de Blog

Samba de Blog 
por: Jarbas Couto e Lima
Amigo, me perdoe o desprazer
Bebedeira me destrói, fui buscar outro lazer
Passei ao computador
Escrevo num livro de faces
Tenho aqui um provedor
Que fica lá nos States
Bate-papo agora é mudo
Sem garçom, sem tira-gosto
Sem garota que passe
Sem ver tristeza no rosto.
O meu sítio digital 
(Não pense em fruta, nem flor)
É uma terra sem quintal
Quando vou ver os vizinhos
Uso um navegador
Com propaganda na proa
Mas sem santo protetor.
Mesmo assim, trafego em tudo
Sei até em demasia:
A viagem da vizinha
As bodas da minha tia.
No vaivém do mercado
Inflacionei amizades
Só de ver a quantidade
Já me sinto o bem amado
Somei contatos da rede
De um amigo mais prezado.
Nesse orbe sem boteco
Ama-se sem abraço
Há multidões sem toques
Em encontros abstratos
Pra encurtar conversa,
Já que estou com e-mail aberto
Quando for me visitar
Peço-lhe o obséquio
De postar no meu mural
Pois conta para o prestígio
Deste amigo virtual.
Refaça lá no meu Face
O convite que me fez
Que vou pesquisar no Google
Ou talvez no myspace,
Com que samba eu vou pro blog
que você me convidou.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Rosa Distraída



Rosa Distraída


Uma paixão quando nasce
É uma rosa distraída
Pertinho de um beijar-flor
Um samba quando toca 
Um coração presunçoso
Ecoa a arte cuitelo
Cuida, depois sorve
A seiva rara asilada
No imo oco do vaso
Do coração sofredor.
Assim, no reino da distração
Samba e beija-flor
São serviçais da poesia    
Que cobram sua vassalagem
No auge da agonia
Em rosas sujas de dor


quarta-feira, 23 de março de 2011

Pingo

        
Pingo 
Molha, mas falha
Costura brilho corisco
Corre risco
Escorre vidro
Risca tarde
Janela cortina
Franze franzino chuvisco

Pingo
Mancha, mas pinta
Café, laranja, mamão
Gruda juntinho tecido
Confio ter sido
salto
gole gula
sem fio ser fio
sem nó
som
Pingo
Mede,um pingo!!!
Mas enche
Seca desejo
Ganância
sacia jejum

Pingo (de gente)
Eu
Pingo
Pingo
Pingo

quarta-feira, 16 de março de 2011

Criar (para Lúcia Santos)

                                                   Criar
                                          Por: Jarbas Couto e Lima

Criar. Houve outra terrena salvação?
Sobre o símio solo necessário do seu pão
O homem precário elevou-se atlântico
Erguido à noite rubra de um sarau de estrelas
Ali, dançara sinuosa a carne do afã
Vestida de nua deusa de luz aldebarã
Criar. Há outra terrena salvação?
Será sereia no alvorecer da inspiração
Em mágico cântico que a palavra entoa  
Em fulgor solar da significância à toa    
Na mais clara noite que nenhum dia ousara  
Por trás mesmo dos cimos da desilusão  
Abrolha faceiro o feixe brilhante, a criação.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Encantada



Domingo à noite, dia dos pais, minha filha de 07 anos insiste em que eu veja com ela um filme que ela adora. Assim fizemos. Arrumamos o sofá, ela deitadinha sobre meu peito, começamos a ver Encantada. No Filme, Giselle é uma bela princesa que, às vésperas do seu casamento, é empurrada num poço profundo por uma rainha malvada, madrasta do príncipe, que queria evitar o casamento do seu enteado para não perder o trono. Dessa forma, a malvada conseguiria banir Giselle de seu mundo mágico e musical (a música é linda!). Entretanto, das profundezas do poço, esta ressurge sobre uma tampa de esgoto, em Manhattan dos dias atuais. Perdida na metrópole americana e ainda vestida de noiva, a moça continua a procura por seu príncipe. Então, ingenuamente, acaba subindo num Outdoor onde havia a foto de um castelo, supondo estar ali a porta do seu mundo perdido. Aquela cena inusitada é descoberta pela filha pequena de um passante que, a pedido da filha, socorre a princessa e a leva para casa. O pai da garotinha é Robert, um advogado divorciado prestes a casar novamente e que desperta em Giselle uma nova paixão. Mas, Giselle ainda não se dá conta do sentimento e continua a esperar o príncipe Edward, que decide também deixar o mundo mágico para procurar sua amada em Manhatan. Depois de muitas vicissitudes, finalmente, o principe a encontra. Mas, paradoxalmente, ante a iminência de voltar para o seu reino, Gisele começa a perceber sua paixão pelo advogado e pede para ficar mais um pouco para uma festa. Assim, (num final surpreendente para histórias infantis), Gisele termina descobrindo seu novo amor e ficando em Manhattan com o advogado. Por outro lado (suponho que para as coisas ficarem mais palatáveis), a noiva deste encanta-se pelo príncipe Edward e é levada para o mundo encantado, onde se casam e vivem felizes para sempre.
Em alguns momentos do filme em que fiquei distraído, minha filha chamara-me a atenção para que eu não perdesse o final. Após assistir atentamente o final, como ela queria, fiquei intrigado, pensando em porque ela insistira tanto para que eu visse essa mudança brusca de escolhas de duas princesas prometidas. E olha que eu tinha acabado de ver o filme “Os Normais”, onde essa alternância de casais também ocorre, de maneira nada ingênua, às vésperas do casamento. Depois de passar uma noite perturbado com a questão, perguntei, então, para minha filha porque ela quis tanto que eu visse aquele final. Ela respondeu que apenas queria assistir ao filme comigo, só porque era dia dos pais.
É claro que pode ter sido este mesmo o motivo. Só ela saberá. O que importa é que minha filha acabou me dando um belo presente. Desde que vi o final do filme, comecei a pensar sobre o desejo nas mulheres. Aquelas mudanças de amores deixaram-me um tanto preocupado com a idéia que tenho de amor romântico. Como podia uma princesa que acabara de encontrar o seu príncipe e que parecia tanto amá-lo, mudar assim de amor tão rápido? Como podia que ela não tivesse dado conta disso (embora continuasse desejando que seu príncipe amado viesse buscá-la) e, só após a chegada deste, tenha descoberto que seu desejo já se dirigia para o advogado? Não estava acostumado a pensar que princesas podiam ser tão instáveis em seu amor. Muito menos que elas pudessem desejar outros homens ainda vivendo a expectativa do casamento com seu príncipe. Cheguei a ficar perturbado e a me perguntar o que realmente me incomodava, senão o fato de eu ter descoberto pela minha filhinha algo tão simples e que todos os homens ou, pelo menos, os pais fazem questão de esquecer: que as mulheres desejam e que suas vidas não se resumem a partilhar um mundo mágico com seu príncipe encantado. Outra coisa que talvez seja tanto atual quanto insofismável nesta historinha é que, mesmo pensando amarem seus príncipes encantados, as princesas mais doces do mundo podem ter seus sentimentos traídos por um desejo que elas próprias parecem desconhecer (embora  possa haver indícios disso).
No dia dos pais, aprendi que é bom que admitamos a possibilidade de sermos superados por outro homem em nossos atributos encantados, mesmo quando nos sabemos amados pelas nossas princesas. Obrigado, Milena!

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Striptease Blues

Striptease Blues (Para Meu Amor)


Mora em meu avesso
em vestes céus azuis
um velho homem nu de nuvens
de algodão
provocante ao se despir do preço
revelando aos poucos sonhos
de verão
desvestindo lento a alma ao som de
um blues
até, enfim, expor seu coração
à luz
que aceso cede ao sedutor impulso
-posto que, além de músculo, é vaso-
de encher-se afoito no sangue dos teus pulsos.