sexta-feira, 28 de outubro de 2011

O Silêncio

O silêncio é fala fingida
Que faz sem querer falar
Corta a carne faminta
Clama ao querer calar

Fere ânsia lancinante
Sangra o sonho em sacrifício
O silêncio segue cortante
Sem contestar o suplício

Cala-se por elegância
Silencia por sapiência
Torna palavra-migalha
Alimento da esperança

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Letras castas

Letras mais esquivas!!
Roçam a pele da página
Lambem da fala os lábios
A oração subornam com perfumes   
Mas, bem que nuas, rejeitam a romança
Negam-me o que mais queria:
Um beijo de língua na boca da poesia

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Língua em silêncio

O silêncio do brinco em tua orelha
Roça em meus lábios fulgor incontido
Faz da língua intromissa centelha
Enquanto cantas obscenos gemidos
E intumesce a melodia inteira
da língua inefável
Que tanto mais fala ao fazer-se falo
Quanto escuta o ouvido
Ao ser lambido.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Oficina

Vício de consertar poemas
os feitos de mim
velhos, miseráveis
imploram por escrito: não cremas!
Vão pra oficina.
Com
certo
trato
tornam
se
abstratos
no torno
retorço
os retos
conformo
os tortos
liquefaço
concretos
eruditos
destroço.
Oficina de poemas:
nobre sina
serra verso
corta termo
prega rima
lavra dor.
Velhos poemas consertados,
quem os quer, Amor?

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Asfixia

                  (para Giselly, que o recitou no Festival Maranhense de Poesia Falada, em 1987)

Falta ar
Passam idéias sufocantes
todas pela metade
O coração é um tanque de guerra
a cabeça, um míssil desativado
a alma flutua sobre o prodre resto de corpo
sobre braços ocos sem a carne da paixão
veias gélidas,
         fúnebres
passos desatinados nas linhas da mão
os olhos abertos num quarto sem tua luz
sob o susurro do esquecimento
o silêncio toca o disco da tua voz
Para a oficina do ser eu
o ser tu já não é dito em mim
Sou um monumento europeu
ou um mendigo num sono de jardim?
Talvez seja o jornal que abraça o mendigo
talvez a ferrugem na flecha do cupido...

quinta-feira, 31 de março de 2011

Samba de Blog

Samba de Blog 
por: Jarbas Couto e Lima
Amigo, me perdoe o desprazer
Bebedeira me destrói, fui buscar outro lazer
Passei ao computador
Escrevo num livro de faces
Tenho aqui um provedor
Que fica lá nos States
Bate-papo agora é mudo
Sem garçom, sem tira-gosto
Sem garota que passe
Sem ver tristeza no rosto.
O meu sítio digital 
(Não pense em fruta, nem flor)
É uma terra sem quintal
Quando vou ver os vizinhos
Uso um navegador
Com propaganda na proa
Mas sem santo protetor.
Mesmo assim, trafego em tudo
Sei até em demasia:
A viagem da vizinha
As bodas da minha tia.
No vaivém do mercado
Inflacionei amizades
Só de ver a quantidade
Já me sinto o bem amado
Somei contatos da rede
De um amigo mais prezado.
Nesse orbe sem boteco
Ama-se sem abraço
Há multidões sem toques
Em encontros abstratos
Pra encurtar conversa,
Já que estou com e-mail aberto
Quando for me visitar
Peço-lhe o obséquio
De postar no meu mural
Pois conta para o prestígio
Deste amigo virtual.
Refaça lá no meu Face
O convite que me fez
Que vou pesquisar no Google
Ou talvez no myspace,
Com que samba eu vou pro blog
que você me convidou.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Rosa Distraída



Rosa Distraída


Uma paixão quando nasce
É uma rosa distraída
Pertinho de um beijar-flor
Um samba quando toca 
Um coração presunçoso
Ecoa a arte cuitelo
Cuida, depois sorve
A seiva rara asilada
No imo oco do vaso
Do coração sofredor.
Assim, no reino da distração
Samba e beija-flor
São serviçais da poesia    
Que cobram sua vassalagem
No auge da agonia
Em rosas sujas de dor


quarta-feira, 23 de março de 2011

Pingo

        
Pingo 
Molha, mas falha
Costura brilho corisco
Corre risco
Escorre vidro
Risca tarde
Janela cortina
Franze franzino chuvisco

Pingo
Mancha, mas pinta
Café, laranja, mamão
Gruda juntinho tecido
Confio ter sido
salto
gole gula
sem fio ser fio
sem nó
som
Pingo
Mede,um pingo!!!
Mas enche
Seca desejo
Ganância
sacia jejum

Pingo (de gente)
Eu
Pingo
Pingo
Pingo

quarta-feira, 16 de março de 2011

Criar (para Lúcia Santos)

                                                   Criar
                                          Por: Jarbas Couto e Lima

Criar. Houve outra terrena salvação?
Sobre o símio solo necessário do seu pão
O homem precário elevou-se atlântico
Erguido à noite rubra de um sarau de estrelas
Ali, dançara sinuosa a carne do afã
Vestida de nua deusa de luz aldebarã
Criar. Há outra terrena salvação?
Será sereia no alvorecer da inspiração
Em mágico cântico que a palavra entoa  
Em fulgor solar da significância à toa    
Na mais clara noite que nenhum dia ousara  
Por trás mesmo dos cimos da desilusão  
Abrolha faceiro o feixe brilhante, a criação.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Encantada



Domingo à noite, dia dos pais, minha filha de 07 anos insiste em que eu veja com ela um filme que ela adora. Assim fizemos. Arrumamos o sofá, ela deitadinha sobre meu peito, começamos a ver Encantada. No Filme, Giselle é uma bela princesa que, às vésperas do seu casamento, é empurrada num poço profundo por uma rainha malvada, madrasta do príncipe, que queria evitar o casamento do seu enteado para não perder o trono. Dessa forma, a malvada conseguiria banir Giselle de seu mundo mágico e musical (a música é linda!). Entretanto, das profundezas do poço, esta ressurge sobre uma tampa de esgoto, em Manhattan dos dias atuais. Perdida na metrópole americana e ainda vestida de noiva, a moça continua a procura por seu príncipe. Então, ingenuamente, acaba subindo num Outdoor onde havia a foto de um castelo, supondo estar ali a porta do seu mundo perdido. Aquela cena inusitada é descoberta pela filha pequena de um passante que, a pedido da filha, socorre a princessa e a leva para casa. O pai da garotinha é Robert, um advogado divorciado prestes a casar novamente e que desperta em Giselle uma nova paixão. Mas, Giselle ainda não se dá conta do sentimento e continua a esperar o príncipe Edward, que decide também deixar o mundo mágico para procurar sua amada em Manhatan. Depois de muitas vicissitudes, finalmente, o principe a encontra. Mas, paradoxalmente, ante a iminência de voltar para o seu reino, Gisele começa a perceber sua paixão pelo advogado e pede para ficar mais um pouco para uma festa. Assim, (num final surpreendente para histórias infantis), Gisele termina descobrindo seu novo amor e ficando em Manhattan com o advogado. Por outro lado (suponho que para as coisas ficarem mais palatáveis), a noiva deste encanta-se pelo príncipe Edward e é levada para o mundo encantado, onde se casam e vivem felizes para sempre.
Em alguns momentos do filme em que fiquei distraído, minha filha chamara-me a atenção para que eu não perdesse o final. Após assistir atentamente o final, como ela queria, fiquei intrigado, pensando em porque ela insistira tanto para que eu visse essa mudança brusca de escolhas de duas princesas prometidas. E olha que eu tinha acabado de ver o filme “Os Normais”, onde essa alternância de casais também ocorre, de maneira nada ingênua, às vésperas do casamento. Depois de passar uma noite perturbado com a questão, perguntei, então, para minha filha porque ela quis tanto que eu visse aquele final. Ela respondeu que apenas queria assistir ao filme comigo, só porque era dia dos pais.
É claro que pode ter sido este mesmo o motivo. Só ela saberá. O que importa é que minha filha acabou me dando um belo presente. Desde que vi o final do filme, comecei a pensar sobre o desejo nas mulheres. Aquelas mudanças de amores deixaram-me um tanto preocupado com a idéia que tenho de amor romântico. Como podia uma princesa que acabara de encontrar o seu príncipe e que parecia tanto amá-lo, mudar assim de amor tão rápido? Como podia que ela não tivesse dado conta disso (embora continuasse desejando que seu príncipe amado viesse buscá-la) e, só após a chegada deste, tenha descoberto que seu desejo já se dirigia para o advogado? Não estava acostumado a pensar que princesas podiam ser tão instáveis em seu amor. Muito menos que elas pudessem desejar outros homens ainda vivendo a expectativa do casamento com seu príncipe. Cheguei a ficar perturbado e a me perguntar o que realmente me incomodava, senão o fato de eu ter descoberto pela minha filhinha algo tão simples e que todos os homens ou, pelo menos, os pais fazem questão de esquecer: que as mulheres desejam e que suas vidas não se resumem a partilhar um mundo mágico com seu príncipe encantado. Outra coisa que talvez seja tanto atual quanto insofismável nesta historinha é que, mesmo pensando amarem seus príncipes encantados, as princesas mais doces do mundo podem ter seus sentimentos traídos por um desejo que elas próprias parecem desconhecer (embora  possa haver indícios disso).
No dia dos pais, aprendi que é bom que admitamos a possibilidade de sermos superados por outro homem em nossos atributos encantados, mesmo quando nos sabemos amados pelas nossas princesas. Obrigado, Milena!

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Striptease Blues

Striptease Blues (Para Meu Amor)


Mora em meu avesso
em vestes céus azuis
um velho homem nu de nuvens
de algodão
provocante ao se despir do preço
revelando aos poucos sonhos
de verão
desvestindo lento a alma ao som de
um blues
até, enfim, expor seu coração
à luz
que aceso cede ao sedutor impulso
-posto que, além de músculo, é vaso-
de encher-se afoito no sangue dos teus pulsos.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Paradoxo Reflexo



Com a licença dos iniciados no tema, faço aqui uma breve reflexão sobre nossa dita rebelde (a meu ver, simplesmente, birrenta) ilha de São Luís. Cultural, econômica e geograficamente distante do interior, a capital, longe de ser uma síntese do Maranhão é marcada por peculiaridades em seu jeito de ser miserável, suja, doente, ignorante e, ao mesmo tempo, bela, romântica, literária e até mesmo rica.
À margem destes traços negativos, é comum vermos São Luís cada vez mais sendo apresentada e reconhecida como a capital da cultura popular. Seja esta cultura popular higienizada, espetacularizada ou não. Porém, para além do que os mitos nos contam, a nosso ver, há, em torno da ilha, um cordão etnocêntrico de valorização exagerada de exotismos de sua cultura “popular” e “histórica” que distancia-nos de valores universais cultuados no mundo “civilizado”. Não haveria nenhum problema em supervalorizar a cultura popular local, baseados na idéia de que transformá-la em riqueza atrairia o olhar dos outros, se não fosse esta uma forma também de nos fazer acreditar em lorotas bem modernas e de conseqüências nefastas em nosso cotidiano.
Na supervalorização de São Luís como capital da cultura popular estamos diante de uma estratégia nada inocente que consiste em exacerbar algo, justamente, para escondê-lo. Em primeiro lugar, podemos perguntar-nos: sendo a cultura popular uma riqueza, por que seria necessário inflacioná-la aos olhos dos outros para que fosse vista? Fica-se como em desenho animado japonês, exagerando o tamanho do olho dos personagens apenas para denunciar quão diminuto ele é na realidade. O mais grave é que esta tentativa de chamar a atenção do outro para a grandiosidade maquiada de nossa cultura popular - uma atitude intuitiva comum a diversos povos- tornou-se o eixo de nossas políticas culturais locais.
Desta forma, o popular, simplesmente por ser popular, é colocado exageradamente acima de qualquer outra expressão da cultura tomado em sentido amplo. É claro que há o universal no popular, mas aqui não são os consensos, as honestidades, as harmonias, as poesias, a simplicidade, a natureza, inteligência que são cultuados nele. A primeira vista, o que justifica a idéia de colocar São Luís como capital da cultura “popular” é a suposição de que, por ser esta cultura uma expressão do “nosso” povo, atual ou antepassado, isto faria  dela a expressão mais autêntica de nossa identidade e quiçá um produto inédito e exótico para o turismo.
Nos últimos anos, talvez em conseqüência da globalização, vemos um fenômeno complementar, ainda que estrangeiro, se instalar com uma falsa superação desta estratégia. Uma espécie de invasão do internacional popular e da tecnologia na cultura local, numa  forma de inclusão da nossa cultura no mercado de bens simbólicos. Em diversas frentes esta presença é sentida, a saber: espetáculo e tecnologia na música (banda de forró, Marafolia, sertanejos, radiolas de reggae, hip hop) popularização do vídeo e tecnologia de gravação (festivais, pirataria), o discurso da Nova Administração e sua companheira inseparável, a gerundização (“Eu posso estar fazendo um desconto pra você ou você pode estar comprando parcelado!!”), o estilo consumis ta nouveau riche da classe média, etc.
Ao tentar conciliar o internacional popular com a cultura popular local, a São Luís contemporânea torna-se, antes de tudo, um paradoxo, mas não abre mão da estratégia cultural anteriormente adotada. Nesta nova forma de valorização do popular, projeta-se o popular e o histórico revestidos de novo em plano expandido. Ao mesmo tempo, continua-se a ocultar o nítido contraste entre a miséria e a luxuosidade, a carnaubeira obtusa e a avenida retilínea esburacada, a direita atropelando-se em cobiça e a esquerda vazia (falo do trânsito), a Oligarquia (um gênero político comum por aqui) e o Estado. Como num espelho, opostos se confrontam e se ad/miram paralisados pelo narcisimo.
Este paradoxo reflexo serve como uma metáfora, como uma lente capaz de ampliar a oposição entre imagens geralmente distorcidas em dimensões opostas de forma a uma ocluir a outra. Assim a luxuosidade dos prédios e carros escondem progressivamente a miséria tão próxima deles. A Oligarquia oblitera o Estado, a direita lenta e ambiciosa se oculta na esquerda vazia, a carnaubeira obtusa preenche o espaço legítimo das palmeiras. Onde o Sabiá háverá de cantar? Que Sabiá?

sábado, 9 de maio de 2009

RICA’RTE



Os amigos, naturalmente, são pessoas que nos encantam. Logo estão a bailar gargalhadas em nossa sala de estar. Também não demora muito para compartilharmos eventuais tristezas doidas neles tanto quanto em nós. No cotidiano, todavia, são mesmo é o pano de fundo de nossas almas paranóicas. Vemos neles uma imagem especular do que gostaríamos de ser e sabemos que nunca somos quando eles não estão ali.


Ricarte Almeida Santos é desses amigos que a gente admira, se espanta, se extasia. A sensibilidade e a delicadeza de Ricarte, no entanto, deram a ele a capacidade de "amizar" com ninguém menos do que a própria música, em pessoa. Poderia dizer: mais precisamente o choro. Mas, estaria cometendo uma grande imprecisão. Talvez, para ser mais preciso, precisaria ser mais abrangente: com a arte.


Rico por definição, seu coração transborda sensibilidade e harmonia. Rica'rte é um homem rico (um dos mais ricos que conheço) e marcado pela versatilidade. Como todo bom chorão, sua arte de viver dá um toque de Midas em diversas escalas. Vai de Fá a Lá (106 oitavas acima) no luxuoso "Chorinhos e Chorões" até uma esplêndida atuação RIPP contra as injustiças sociais.


A força e a dedicação dessa arte se ancoram em profundas raízes. Seu pai lhe deixou o legado do choro e com ele a certeza de que um homem chora sempre que pode. Assim, Ricarte sempre soube nos fazer chorar de arrebatamento ante a beleza de suas criações. Ademais, nem tudo é choro. Seu melodioso conhecimento desliza por entre ouvidos internos e externos à música do mestre Ernesto Nazaré. Um virtuoso do instrumento de conhecer a música brasileira, sua execução majestosa faz legato do choro ao samba com maestria. Nem por isso, há menos extensão sonora em seu instrumento quanto se trata de tocar a música e os músicos da terra.


Mas, convenhamos que nada se compara a sua presença carinhosa e amiga. Rica'rte de viver, Rica'rte de ouvir, Rica'rte de chorar, Rica'rte de sorrir. Ricarte sempre!

A Caneta e a Palheta





Insiste em mim um lapso. Perco sempre canetas. Não apenas as perco como elas próprias tratam de se livrar de mim. A última foi quase um investimento. Muito cara, inventou de emperrar a engrenagem que se esconde sob aquela bela estrutura de metal que faz a diferença na hora de comprar. É sempre assim, quando começo um chamego com minha nova caneta, logo um defeito surge ou um esquecimento trata de nos afastar. Isso não passaria de uma deformidade pessoal ou um estranho gosto por perder canetas, se não fosse outra "psicose" igualmente curiosa.


Para além de minha consciência há uma aptidão, quase uma autoridade em nunca perder as palhetas da minha solitária guitarra, embora esteja esta sempre mais próxima do canto do que do peito. Contudo, quando empunho a abandonada guitarra, como uma espécie de São Longuinho, ela dá sempre um jeito de fazer reaparecer aquela palheta há muito perdida. Cheguei a acumular várias de tanto repô-las e logo em seguida reencontrá-las. Tenho uma linda, marrom com rajadas cor de fogo. Despretensiosa, já está comigo há mais de oito anos. Intriga-me encontrá-la repentinamente quando pensava já tê-la perdido.


Porque amiúde perco canetas e preservo palhetas? Há perguntas cujas respostas estão tão escondidas que nem São Longuinho nos ajuda a achar. Respostas-canetas que se perdem para sempre. Teremos que ir mais fundo na história dos deuses. Talvez, Apolo com o auxílio de sua irmã Ártemis, deusa da caça, nos indique como encontrar uma resposta. Com seu caráter multifacetado, Apolo foi identificado como deus da música, da poesia e das artes. Sendo o patrono do Oráculo de Delfos, era o deus dos adivinhos e profetas.


Dentre as muitas narrativas que tem este deus grego como protagonista, consta-se que Apolo recebeu de Hermes uma lira que este havia criado com o casco de uma tartaruga e com as tripas do gado que havia roubado do próprio Apolo. Indignado com o furto, Apolo exigiu de Maia, mãe de Hermes, que seu filho devolvesse o rebanho. Enquanto a discussão prosseguia, Hermes começou a tocar a lira, a música foi tão admirada por Apolo que este perdoou Hermes pela pilhagem.


Daí a solução do enigma da caneta e da palheta. Com sua magia melodiosa, a música acha o que não se procura, junta o que se tomou por separado, aproxima os longínquos e apazigua os deuses. Assim, a guitarra encontra a palheta.


A caneta, por sua vez, não tarda em perder-se. O papel nu, mudo e envergonhado dela se esconde sem promessas. Enquanto a palheta encontra, a caneta não pára de se perder. Assim, para reencontrá-la, é preciso, primeiro, escutar a música reprimida nestas caraminholas literárias.

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Amizar

Caras (os) Amigas (os),
Procurei um tema para retomar as postagens no Blog. Ocorreram-me alguns assuntos. A já assustadora "gripe suína" veio do medo, o machismo na escrita me ocorreu quando utilizava um pronome de tratamento para iniciar uma mensagem. Dei-me conta que utilizamos "Senhor (a)", mas nunca "Senhora (r)". Seria a gramática uma senhora machista? Para não entrar nesse terreno perigoso, prefiro escrever sobre a amizade que é um tema sempre atual e cuja gramática interessa-me mais conhecer.
A história está repleta de grandes amizades. Marx e Engels, Freud e Fliess são exemplos de parcerias da vida intelectual. Zagalo e Parreira, no futebol. Na música, temos os clássicos amigos Roberto e Erasmo. Aliás, parece que as duplas sertanejas encantam tanto pela amizade quanto pelas canções. Chitãozinho e Xororó são mais que uma dupla. Seus codinomes unem a delicadeza dos pássaros cantadores ao afeto das canções. Mas sabemos que há tantos amigos visíveis e invisíveis na vida dos célebres quanto dos anônimos. É comovente a amizade que presenciei entre um pedreiro simples, Seu Riba e Seu Domingos (é assim com o respeitoso "Seu" que eles se tratam), seu fiel ajudante.
Não pensem que porque só menciono amizades masculinas, eu seja como a Gramática, machista. Estou informado que, de acordo com um estudo da Universidade de Manchester, na Grã-Bretanha, as mulheres costumam formar amizades mais profundas e duradouras. Talvez a falta de notoriedade dos casos de grandes amizades entre mulheres seja a própria essência da forma da amizade. A trivialidade, a simplicidade das relações, a privacidade, a delicadeza, próprias do feminino, seriam o apanágio da amizade? A amizade masculina seria assim uma expressão de valores e sentimentos femininos? Talvez, por isso, o lema do Exército brasileiro seja "braço forte, mão amiga". A força fica com o braço (masculino) a amizade com a mão (feminino).
Assim misturada à sexualidade e talvez por ser desta derivada, a amizade é uma das mais sublimes invenções da cultura humana. Cultivá-la com apuro é o próprio exercício do amor e da delicadeza. Curioso que não exista o verbo "amizar", mas é preciso conjugá-lo, independente de gênero, número e grau.

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

A ‘Ciência dos Sonhos’ e a Criação Literária

Jarbas Couto e Lima

A literatura e a psicanálise se situam num campo comum, a saber, aquele que articula a linguagem e a subjetividade. Tanto do ponto de vista da criação quanto da estruturação mesma do discurso literário, são muitas as aproximações com aquilo que Freud e Lacan descobrem na estrutura e funcionamento do inconsciente. Grandes autores da literatura universal relatam sentirem-se, no processo de criação, suplantados por um Outro que, por assim dizer, assume sua pena no instante em que se acende a centelha criativa. Seja a assunção repentina de um tema a buscar o autor, de que nos fala Borges, ou a revelação de um Guimarães Rosa, que relata-nos um dos seus contos prediletos ter sido escrito através dele (Fernandes 2000, pp. 28-29), em ambos os casos, o que se quer relatar é esse estado de coisas em que o autor não tem a exata medida de quem encontra o tema ou de quem escreve. Esse processo que desloca o autor/indivíduo de sua posição de agente criador é muito semelhante ao que experimentamos no sonhar. Nos relatos dos sonhos esse processo de distanciamento entre o autor e a criação fica muito mais evidenciado. Além disso, partimos do ponto em que Freud reconheceu no produto da criação onírica a estrutura de um discurso eminentemente literário. Portanto, nosso objetivo aqui é tentar pensar sobre tais processos de criação literária que privilegiam a letra em detrimento do autor. Mais especificamente, entender até que ponto a teoria freudiana da interpretação dos sonhos serve a essa reflexão. Assim, pretendemos registrar nosso retorno a Freud no âmbito daquilo que se relaciona com um retorno à letra, o que, em nosso entendimento, representa um avanço.
Ernst Kris, a quem Freud confiou a editoria da Revista Imago, e que, posteriormente, veio a tornar-se um dos membros do mal-afamado "Triunvirato de Nova York", afirma em seu livro "Psicanálise da Arte" que o primeiro reconhecimento público ao livro de Breuer e Freud "Estudos sobre a Histeria", ante o silêncio dos colabores das revistas médicas, veio de um poeta, Alfred Von Berger. Este último, além de diretor do teatro imperial de Viena era um conhecido crítico de Literatura e Teatro. Em seu artigo intitulado "Cirurgia da Alma", citado por Kris, afirma com entusiasmo: "Essa teoria não é nada mais do que a psicologia dos poetas" (Berger, apud Kris, 1968, p. 203).
Este fato, sem dúvida, por si só demonstra quão cedo se deu a aproximação da psicanálise com a literatura. Mas Kris vai além. "Psicanálise da Arte" possui, pelo menos, uma seção dedicada ao tema da criação artística e um capítulo ao da inspiração, o qual faz referência constante à criação literária. Neles o autor explica que o processo de criação artística estaria composto de duas etapas complementares: a primeira etapa sendo realizada pela "inspiração", e a segunda pela "elaboração". A primeira etapa do processo de criação, conforme Kris descreve, é caracterizada pelo sentimento de "se estar sendo conduzido", pela "convicção de que um agente exterior preside a criação". A segunda etapa, por sua vez, teria muita semelhança com o trabalho habitual de todos nós, que implica dedicação e concentração. De tal modo que o processo de criação, que envolve essas duas etapas, em última instância seria presidido pelo Ego que controlaria a inspiração ou "loucura criadora", como o autor a nomeia, citando Platão. Desse modo, a criação artística resultaria, fundamentalmente, do trabalho do Ego, a quem caberia a função de controlar o processo primário e colocá-lo à sua disposição. Sua função seria a sublimação da atividade criadora. De onde, conseqüentemente, a arte adquiriria toda sua função, a saber, a função de comunicação. Ao Ego caberia, portanto, o papel de intermediário entre este processo inconsciente e o público a quem se dirige a criação artística.
Ainda que estejamos tratando do mesmo tema, o que levamos em conta aqui em termos de criação literária pouco tem a ver com essa mesma noção em Kris. Podemos nos distinguir em, pelo menos, dois pontos: Em primeiro lugar, não pretendemos considerar a função de um autor/indivíduo no processo de criação, a idéia de um Ego conduzido o processo não terá a menor importância em nosso trabalho (embora, não se possa descartá-la por completo); Em segundo lugar, na medida em que Kris compara a etapa primeira do processo de criação à loucura, parece indicar que não vê aí nenhuma razão operando.
Todavia, encontramos no próprio Kris algo que nos serve como uma indicação de onde vem, verdadeiramente, a inspiração no processo de criação. No capítulo sobre a inspiração ele apresenta algo que vale a pena considerar. Kris o inicia com a seguinte frase: "Tomemos o espírito da língua para nossos primeiros passos." Em seguida passa a empreender uma análise de duas acepções da palavra "inspiração". Na primeira delas, considera "inspiração" em seu sentido supostamente literal. Esse sentido que estaria, segundo ele, na seguinte narração do Gênesis (2, 7): "Então formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra, e lhe soprou nas narinas o sopro da vida, e o homem passou a ser uma alma vivente". O termo "inspiração" teria, assim, originalmente, o valor de "inalar" e "soprar". Entretanto, o autor se vale destes significantes apenas para, logo em seguida, abandonar este sentido considerado literal de "inspiração" e empregar o significante como uma metáfora, ciente de que tal emprego "transpõe a ação física de inspirar para o plano espiritual."
Embora se possa supor que não fosse essa a intenção do autor, ao adotar o que chama de "espírito da língua", ressalta-se, porém, que, ao fazer renascer do Gênesis os significantes "inalar" e "soprar", para, em seguida, jogá-los no esquecimento e daí criar sua metáfora, transpondo, com isso, a "inspiração" do plano físico para o plano espiritual, Kris coloca-se no interior da tradição freudiana. Pode-se afirmar que ele estava a um passo de apreender na articulação do significante inspiração toda estrutura da cadeia significante. Assim, surpreende-nos o fato de o autor ter negligenciado a função da linguagem em sua "psicologia dos processos criadores". Nesta última, pelo contrário, a atividade criadora, no que diz respeito a seu aspecto inconsciente, é concebida, fundamentalmente, como um processo de regressão às fases pré-genitais, que redundaria, em ultima instância, numa produção anal. As experiências pré-genitais seriam responsáveis pelas fantasias ligadas à inspiração e o elemento pré-genital que ressurge seria decorrente da regressão.
Consideramos que seria, no mínimo, desfocada, uma leitura de Freud como essa que permitisse conceber esse caráter tão biológico quanto inefável para o inconsciente. Bem como para o Ego esta função de mediador entre o mundo interno e o mundo externo. Ou ainda de atribuir ao Ego o valor principal de âmago da subjetividade. Ponderamos que, ao reter-se ante o que chama de espírito da língua, mesmo que se possa considerar inadmissível a hipótese de que o autor não tenha dado pelo menos alguns passos com Freud, estes não passaram dos primeiros. Ou seja: posto que Kris não quisesse retornar a essa tradição freudiana, surpreende, especialmente, o fato de que não a tenha ignorado por completo.
Assim sendo, de nossa parte, retornemos como a um ponto de partida a esse momento tão tardio da história da psicanálise citado por Kris, para mencionarmos o sentido que pretendemos dar à expressão um retorno a Freud, proposta como tema desta Jornada. Adiantamos que, em nosso caso, esse sentido consiste, mais precisamente, num retorno a essa aproximação tão remota quanto precoce feita por Berger entre psicanálise e poesia. Pretendemos retornar exatamente àquilo que ela nos apresenta de mais surpreendente: a radicalidade da aproximação entre a teoria do inconsciente e a criação literária. Nossa questão advém precisamente daí: que razão permitiria essa relação tão fundamental da teoria psicanalítica com a criação literária a ponto de se poder considerar a primeira como uma "psicologia dos poetas"? Aí reside nosso interesse em investigar tal relação no âmbito da 'Ciência dos Sonhos', no suposto de que há algo, simultaneamente, de teórico e poético que se assenta nessa curiosa ciência. Tal suposto, pelo menos, nos livra de tratarmos a criação literária como uma espécie de loucura, ainda que criadora.
Na célebre Carta 52, datada de 06 de dezembro de 1896, temos uma primeira aproximação quanto à natureza comum dos fenômenos em foco. Freud revela a seu amigo Fliess que está trabalhando com a hipótese de que "nosso mecanismo psíquico tenha-se formado por um processo de estratificação: o material presente em forma de traços de memória estaria sujeito, de tempos em tempos, a um rearanjo segundo novas circunstâncias – a uma retranscrição" (Freud 1988, p.324). O que Freud anuncia, então, como novo em sua teoria é o postulado de que o aparelho psíquico é fundamentalmente um aparelho de memória. Este funciona, essencialmente, por um processo que ele chama de retranscrição. Os próprios termos utilizados nesta carta, tais como transcrição, tradução, rearanjo, para referir-se aos processos por que passa o material psíquico, nos remetem à hipótese de que a memória desse aparelho é uma memória de linguagem, uma memória de escritura.
Assim, quando nos valemos da "Ciência dos Sonhos" é para ressaltar que nossa tentativa de analisar a relação entre os sonhos e a criação literária, no fundo, é um exercício desta aproximação da ciência com a significância, quanto à natureza do inconsciente. Freud ousou ao teorizar sobre os sonhos apesar das reprovações da ciência da época, mas nunca abandonou os princípios científicos que pretendia vigentes também para a psicanálise. De forma que a abordagem psicanalítica, segundo ele, deveria incluir mais a natureza do "psíquico" do que a simples descrição dos seus constituintes. Isso implicava, principalmente, numa gradativa aproximação teórica em relação à natureza dos processos psíquicos. Ainda que esta aproximação se dê sempre de maneira incompleta, já que, segundo Freud, aquilo que dela ignoramos é precisamente a parte mais importante. Ademais, tendo a clareza de que o inconsciente, por muito tempo, esteve "batendo aos portões da psicologia" e que a "filosofia e a literatura quase sempre o manipularam distraidamente", Freud considerava que o caráter científico de sua abordagem residia, sobretudo, no fato mesmo de ter descoberto algumas leis que governam esses processos de significância que nele ocorrem.
Mas vejamos como Freud concebe neste célebre texto, "A interpretação dos Sonhos" que, segundo Lacan, abre a via régia para o inconsciente, o que nos sonhos há de criação literária. Isso se dá com a elucidação de como opera nos sonhos os processos de transcrição de um material para outro. Freud considerava esse tipo de explicação um avanço em relação ao que se havia dito até ali sobre os sonhos. Como num movimento de retorno, ele apóia sua nova abordagem sobre sonhos não na ciência estrita, mas num regresso às convicções da antiguidade e da tradição popular de que os sonhos são passíveis de interpretação e possuem relações com o futuro. Disso podemos depreender que até mesmo no próprio Freud o avanço depende de certo retorno.
Assim, Freud apresenta uma abordagem nova sobre os sonhos, naquilo que, ao se dar conta do processo de transcrição por que passa o material psíquico no sonho, deixa de privilegiar apenas o seu conteúdo manifesto, tal como se apresenta em nossa memória e introduz uma nova classe de material psíquico, a saber, seu conteúdo latente. Segundo Freud, é deste último material, nos "pensamentos do sonho", e não do conteúdo manifesto, que depreendemos seu sentido. Assim sendo, a tarefa a que Freud se propôs foi a de investigar as relações entre o conteúdo manifesto dos sonhos e os pensamentos oníricos latentes e de desvendar os processos pelos quais estes últimos se transformaram naqueles. Freud se expressa assim:

"Os pensamentos do sonho e o conteúdo do sonho (ou conteúdo manifesto) nos são apresentados como duas versões do mesmo assunto em duas linguagens diferentes. Ou, mais apropriadamente, o conteúdo do sonho é como uma transcrição dos pensamentos oníricos em outro modo de expressão cujos caracteres e leis sintáticas é nossa tarefa descobrir, comparando o original e a tradução. Os pensamentos do sonho tornaram-se imediatamente compreensíveis tão logo tomamos conhecimento deles. O conteúdo do sonho, por outro lado, é expresso, por assim dizer, numa escrita pictográfica cujos caracteres têm de ser individualmente transpostos para a linguagem dos pensamentos do sonho. Se tentássemos ler esses caracteres segundo seu valor pictórico, e não de acordo com sua relação simbólica, seríamos claramente induzidos ao erro" (Freud 1988, p. 270).

Dessa forma, Freud propõe que tratemos o conteúdo dos sonhos como um rébus, o que significa dizer que não o tomemos simplesmente como uma composição pictórica absurda, mas que tentemos substituir cada elemento isolado por uma sílaba ou palavra que possa ser representada por aquele elemento de um modo ou de outro. Este método que nos leva a tomar o sonho ao "pé da letra" nos coloca no espírito da relação entre a "Ciência dos Sonhos" e a criação literária, já que como resultado de sua aplicação, segundo Freud, o que poderemos obter "é uma frase poética de extrema beleza e significado" (Freud 1988, p. 270).

Para nosso exercício de análise da relação entre os sonhos e a criação literária, tomamos como ponto de partida a noção de "memória" uma vez que em Freud não há psíquico sem memória. Queremos precisar, todavia, que não se trata aqui de memória de acontecimentos, mas da memória feita de traços e de diferenças. Sabemos que, para Freud, cada traço que constitui a memória é traço de impressão, de tal modo que o traço é a forma pela qual a impressão mantém seus efeitos. Cabe advertir ainda que essa relação não é ponto a ponto. Ou seja: cada traço não representa apenas uma determinada impressão, muito menos uma coisa ou um determinado objeto. Na concepção de memória que adotamos aqui, o traço torna-se texto logo que se inscreve, não havendo anterioridade de um sobre o outro. Em outras palavras, na dita "memória de escritura" os traços que ali restam constituem a estrutura do aparelho psíquico na mesma medida em que se inscrevem.
Uma cena onírica, por exemplo, pode representar a impressão de um acontecimento, mas essa representação se verifica na medida em que o conteúdo manifesto do sonho seja concebido como uma inscrição de traços de impressão, ou seja, como um texto, um texto feito de figuras como num rébus. Esse texto, quando recordado, não pode ser tomado como o material original e sim como um substituto deformado, que só com a re-transcrição em outros traços pode permitir sua decifração.
Assim, ao inscreverem-se como texto, os traços não mantêm nenhuma fidelidade com as impressões das quais se originam, uma vez que se inscrevem numa textura própria, indissociável, por outro lado, das leis estruturais do "aparelho". Ao conceber o sonho como um texto pictórico que precisa ser decifrado Freud inscreve algo fundante para a psicanálise, e permite a Lacan aí retornar para instituir o significante como algoritmo desse processo. A verdade a que queremos retornar em Freud é, por assim dizer, tributária desta escrita no inconsciente cuja letra Lacan nos avança.
Vejamos, desse modo, no texto de Lacan, fundamentalmente, em que este retorno nos avança. Ater-nos-emos àquele texto cuja instância da letra Lacan quis ressaltar para indicar o lugar de onde a letra insiste em exercer sua autoridade.
Sabemos que, no texto de Lacan, a verdade freudiana é um modesto raio de sol que inscreve nas bordas de sua sombra a imagem suntuosa de uma esfinge. Logo, para aquele que, ao contrário de Kris, não se detiver nas portas de seu paço tecido de poesia, não restará outra saída, que não seja sua entrada.
Avançar na instância da letra nos faz perceber de saída que, ao parodiar a razão freudiana com a letra no inconsciente, Lacan faz um retorno a uma concepção de razão que desde Freud é a própria insistência da letra no inconsciente. Ou seja: tudo o que ali se passa é esta estrutura que Lacan fez valer pela letra cujo algoritmo, enquanto tal, segundo ele, não passa de "pura função significante" (Lacan 1998, p. 501). A razão desde Freud é, pois, a própria estrutura da poesia, bem entendido, daquilo que restou neste significante poesia, com o valor de criação, logo que o articulamos com o significante grego poiésis. Ou seja: se o inconsciente é poeta, o é justamente na medida em que a poesia é a própria letra em criação. Esta criação literária que podemos escutar na poesia, Lacan nos faz ouvi-la como polifônica, o que significa dizer que:

"Não há cadeia significante, com efeito, que não sustente, como que apenso na pontuação de cada uma de suas unidades, tudo o que se articula de contextos atestados na vertical, por assim dizer, desse ponto (Lacan 1998, p. 507).


Podemos concluir que a metáfora da polifonia serve para Lacan nos advertir que a significância da cadeia significante não se produz entre dois significantes igualmente atualizados, mas que a "centelha criadora" que ascende um determinado significante no discurso é a mesma que declina outro, o qual, no entanto, ainda em brasa, mantém a conexão com o resto da cadeia.
O título de nosso trabalho propõe relacionar a "Ciência dos Sonhos" à criação literária. Procuramos fazer tal relação tomando a criação literária ao pé da letra, menos pela veia de um autor do que pela via da criação própria da letra. Considerando o que já foi dito até aqui, talvez já tenhamos pagado por este título um justo valor, na medida em que em sua letra ele carrega algo de impagável. A guisa de conclusão, acrescentarei apenas um breve comentário sobre o texto "Delírio e Sonhos na Gradiva de Jansen" no qual Freud analisa, a luz de da noção de fantasia, as criações oníricas presentes nessa obra. Sabemos que nesse texto, assim como no texto "Escritores Criativos e Devaneios" Freud privilegiou o estudo das fantasias como meio de explicação para o processo de criação nas obras literárias. Para ele, a obra literária e uma continuação, ou um substituto do brincar infantil. A criação literária é a expressão de um desejo.
Embora não o tenhamos privilegiado como tema em nossa exposição, sem dúvida, o desejo está diretamente relacionado com a substituição significante. Sabemos que é a metáfora que confere ao homem seu status de sujeito desejante e que é na qualidade de metonímico que o desejo persiste em designar o desejo do todo (objeto perdido) pela expressão de desejo da parte (objetos substitutivos). Isso parece estar de acordo com o que se passa no texto sobre a Gradiva de W. Jensen, no qual Freud apresenta o desejo como o retorno do recalcado. Lembremos que na medida em que Gradiva é uma metáfora, esta substituição confere a seu admirador Hanold a condição de sujeito desejante, pois só assim ele consegue fazer passar o seu amor recalcado por Zoe. Por outro lado, o passo da Gradiva (essa 'jovem que avança') representado no relevo pelo qual Hanold viu-se fascinado, sendo a expressão de desejo da parte, é tomado pelo desejo do todo. Desse modo, embora não tenha sido esse o nosso propósito neste pequeno trabalho, uma investigação mais ampla que levasse em consideração o sujeito do desejo e sua relação com a lógica significante, talvez pudesse ajudar a entender a criação literária com mais profundidade do que nós conseguimos aqui. Isso impõe mais retorno a Freud.

Referência Bibliografia:
Dör, Joel – Introdução à leitura de Lacan: o inconsciente Estruturado como Linguagem, Porto Alegre, Artes Médicas, 1992.

Fernandes, Lia Ribeiro – O Olhar do Engano: autismo e Outro primordial. São Paulo, Escuta, 2000.

Freud, S. Carta nº 52 (vol I) Obras completas, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1988.

_______ A Interpretação dos sonhos, (vols. 4 e 5), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, Rio de Janeiro: Imago, 1987.
________ Delírios e Sonhos na Gradiva (vol.IX), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, Rio de Janeiro: Imago, 1987.
_________ Escritores Criativos e Devaneios (vol.IX), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, Rio de Janeiro: Imago, 1987.

Garcia-Roza, Luiz Alfredo – Introdução à Metapsicologia Freudiana, (vol. 2), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.

Kris, Ernst – Psicanálise da Arte, São Paulo, Editora Brasiliense, 1968.

Lacan, J. A instância da Letra no Inconsciente ou a razão desde Freud, in Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

NANCY, Jean-Luc; LACOUE-LABARTHE, Philippe. O título da letra. São Paulo, Escuta, 1991.